sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Estado de polícia mata a democracia

A crescente multiplicação de dispositivos de segurança testemunha uma mudança na conceituação política, a ponto de podermos legitimamente nos perguntar não apenas se as sociedades em que vivemos ainda podem ser qualificadas de democráticas, mas também e acima de tudo se elas ainda podem ser consideradas sociedades políticas. Preocupações se acumulam sobre os perigos de um controle absoluto e sem limites por parte de um poder que disporia de dados biométricos e genéticos de seus cidadãos. Com essas ferramentas, o extermínio dos judeus (ou qualquer outro genocídio imaginável), baseado numa documentação incomparavelmente mais eficaz, teria sido total e extremamente rápido. A pretexto de segurança pública, as leis de hoje são muito mais severas que no fascismo.
 
“Todo cidadão é um terrorista potencial”
 
Os dispositivos de segurança têm desempenhado um papel decisivo nesse processo. A extensão progressiva a todos os cidadãos das técnicas de identificação outrora reservadas aos criminosos inevitavelmente afeta a identidade política. Pela primeira vez na história da humanidade, a identidade não é mais função da “pessoa” social e de seu reconhecimento, do “nome” e da “nominação”, mas de dados biológicos.
 
Se critérios biológicos, que em nada dependem da minha vontade, determinam minha identidade, então a construção de uma identidade política se torna problemática. Que tipo de relação eu posso estabelecer com minhas impressões digitais ou com meu código genético? Enquanto a cidadania grega se definia pela oposição entre o privado e o público, a casa (sede da vida reprodutiva) e a cidade (lugar do político), a cidadania moderna parece evoluir numa zona de indiferenciação entre o público e o privado, ou, para tomar emprestadas as palavras de Thomas Hobbes, entre o corpo físico e o corpo político.
 
Essa indiferenciação se materializa na videovigilância das ruas em nossas cidades. Tal dispositivo conheceu o mesmo destino que o das impressões digitais: concebido para prisões, ele tem sido progressivamente estendido para os lugares públicos. Um espaço videovigiado não é mais uma ágora, não tem mais nenhuma característica pública; é uma zona cinzenta entre o público e o privado, a prisão e o fórum. Tal transformação tem uma multiplicidade de causas, entre as quais o desvio do poder moderno em relação à biopolítica ocupa lugar especial: trata-se de governar a vida biológica dos indivíduos (saúde, fecundidade, sexualidade etc.), e não mais apenas exercer uma soberania sobre o território. Esse deslocamento da noção de vida biológica para o centro da vida política explica o primado da identidade física sobre a identidade política.
 
Mas não podemos esquecer que o alinhamento da identidade social com a corporal começou com a preocupação de identificar os criminosos recidivos e os indivíduos perigosos. Portanto, não é surpreendente que os cidadãos, tratados como criminosos, acabem por aceitar como evidente que a relação normal entre o Estado e eles seja a suspeita, o fichamento e o controle. O axioma tácito, que é preciso aqui arriscar a anunciar é: “Todo cidadão – enquanto ser vivente – é um terrorista potencial”. Mas o que é um Estado, o que é uma sociedade regida por tal axioma? Podem ainda ser definidos como democráticos ou mesmo como políticos?
 
Ao se colocar sob o signo da segurança, o Estado moderno deixa o domínio da política para entrar numa no man’s land em que mal se percebem a geografia e as fronteiras e para a qual nos falta conceituação. Esse Estado, cujo nome remete etimologicamente a uma ausência de preocupação (securus: sine cura), nos deixa ainda mais preocupados com os perigos a que ele expõe a democracia, já que a via política se tornou impossível; pois democracia e vida política são – ao menos em nossa tradição – sinônimos.
 
Diante de tal Estado, é preciso repensar as estratégias tradicionais de conflito político. No paradigma securitário, todo conflito e toda tentativa mais ou menos violenta de reverter o poder oferecem ao Estado a oportunidade de administrar os efeitos em interesse próprio. É isso que mostra a dialética que associa diretamente terrorismo e reação do Estado numa espiral viciosa. A tradição política da modernidade pensou nas transformações políticas radicais sob a forma de uma revolução que age como o poder constituinte de uma nova ordem constituída. É preciso abandonar esse modelo para pensar mais numa potência puramente destituinte, que não fosse captada pelo dispositivo de segurança e precipitada na espiral viciosa da violência. Se quisermos interromper o desvio antidemocrático do Estado securitário, o problema das formas e dos meios de tal potência destituinte constitui a questão política essencial que nos fará pensar durante os próximos anos

Giorgio Agamben, Le Monde Diplomatique

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

A potência política da multidão queer

O biopoder (o poder sobre os corpos) produz as disciplinas de normalização e determina as formas de subjetivação. Já a sexopolítica vai além: os corpos e as identidades dos tidos como anormais não são simplesmente efeitos dos discursos sobre o sexo, mas também potências políticas.
 
Por oposição às políticas “feministas” ou “homossexuais”, a política da multidão queer não repousa sobre uma identidade natural (homem/mulher) nem sobre uma definição pelas práticas (heterossexual/homossexual), mas sobre uma multiplicidade de corpos que se levantam contra os regimes que os constroem como “normais” ou “anormais”.
 
Mas se as multidões queer são pós-feministas não é porque desejam ou podem atuar sem o feminismo. Pelo contrário, elas são o resultado de um confronto reflexivo do feminismo com as diferenças que o feminismo apagou em proveito de um sujeito político “mulher” hegemônico e heterocêntrico.
 
A política das multidões queer emerge de uma posição crítica a respeito dos efeitos normalizantes e disciplinares de toda formação identitária, de uma desontologização do sujeito da política das identidades: não há uma base natural (“mulher”, “gay” etc.) que possa legitimar a ação política. Não se pretende a liberação das mulheres da “dominação masculina”, como queria o feminismo clássico, já que não se apoia sobre a “diferença sexual”, sinônimo da principal clivagem da opressão (transcultural, trans-histórica), que revelaria uma diferença de natureza e que deveria estruturar a ação política. A noção de multidão queer se opõe decididamente àquela de “diferença sexual”, tal como foi explorada tanto pelo feminismo essencialista (de Irigaray a Cixous, passando por Kristeva) como pelas variações estruturalistas e/ou lacanianas do discurso da psicanálise (Roudinesco, Héritier, Théry...). Ela se opõe às políticas paritárias derivadas de uma noção biológica da “mulher” ou da “diferença sexual”. Opõe-se às políticas republicanas universalistas que concedem o “reconhecimento” e impõem a “integração” das “diferenças” no seio da República. Não existe diferença sexual, mas uma multidão de diferenças, uma transversalidade de relações de poder, uma diversidade de potências de vida. Essas diferenças não são “representáveis” porque são “monstruosas” e colocam em questão, por esse motivo, os regimes de representação política, mas também os sistemas de produção de saberes científicos dos “normais”.
 
Nesse sentido, as políticas das multidões queer se opõem não somente às instituições políticas tradicionais, que se querem soberanas e universalmente representativas, mas também às epistemologias sexopolíticas straight, que dominam ainda a produção da ciência.
_______________________________________
Fonte: PRECIADO, Beatriz. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 312, janeiro-abril/2011.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Por que minha liberdade ofende as correntes do desamor

 
Ciente de que minha liberdade incomoda algumas pessoas que visitam este blog, gasto um tempinho agora só para dedicar a elas o vídeo a seguir, que, ao que me parece, contém uma linguagem finalmente apropriada, diferente dos meus sempre mal interpretados textos.
Espero que essas pessoas extraiam liçõeszinhas com as duas historinhas apresentadas no vídeo, vale a pena. Boa sessão!
 
 


sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Ocupar a Copa

"Não vai ter Copa" foi uma palavra de ordem que se destacou nas manifestações de rua do ano passado. Para parte da esquerda, é incompatível que o Brasil sedie o mundial futebolístico, que envolve fortunas, se não há, supostamente, investimento em áreas básicas e prioritárias, como saúde e educação. Com efeito, o argumento é justo.
 
No Rio de Janeiro, no entorno do famoso estádio Maracanã, depois de duas violentas desocupações do maior símbolo de resistência indígena da cidade, esta semana foi a vez do templo negro do samba, a Mangueira, ter sua carne cortada: centenas de casas viraram ruínas e moradores perderam o pouco que têm em nome do mega-evento milionário.
 
O quadro é absurdo, mas a Copa em si não necessariamente deveria implicar essas gravíssimas repercussões. Por isso, ao invés de simplesmente bradar "não vai ter Copa", nosso recado tem que ser "ocupe a Copa". Exatamente como escreveu a querida Carla Santos no facebook:
 
"Sim, a FIFA é o câncer do futebol mundial, assim como a CBF é o câncer do futebol brasileiro. Agora, por causa disso torneios mundiais e nacionais, como a Copa e o Brasileirão, devem sumir do mapa? Gente, a palavra de ordem deveria ser #OcupeACopa. Se a Copa não está sendo para o brasileiros - e não devemos permitir que os crimes cometidos contra a Aldeia Maracanã e a população da Mangueira, entre tantos outros, fiquem impunes - vamos ocupá-la para que seja. Vamos #OcuparOsEstádios #OcuparOstreinos, vamos arrancar a Copa das mãos dos cartolas especuladores. Isso me parece muito mais inteligente do que ficar gritando "Não vai ter Copa" - e fazendo coro com a mídia e a oposição ao governo Lula-Dima. Até por que VAI TER COPA SIIIIM, queiram ou não queriam, e o que vamos fazer? Ignorar a realidade em nome da nossa vontade (que pode ser super bem intencionada, mas que não passa de vontade), ou vamos abrir os olhos e encarar a realidade, AGINDO para TRANSFORMÁ-LA no lugar de negá-la? Cadê as propostas, projetos, ações e iniciativas que se contrapõem ao modelo da FIFA de Copa do Mundo? Se a Copa do Mundo que temos não é a que queremos, VAMOS à LUTA pela NOSSA COPA!!! Crítica sem proposta é só diagnóstico, não apresenta perspectiva, é insuficiente para transformar o mundo. #OcupeACopa!"
 
Essa posição é a mais sensata, merecendo ganhar corpo e prevalecer nas redes sociais e nos movimentos de rua. Temos que vencer as maquinações que o oligopólio da mídia brasileira já elabora, mirando as eleições, visando jogar a opinião pública contra o governo Dilma e a esquerda contra a própria esquerda.
 
É preciso divulgar a verdade: que o orçamento público estabelece um investimento em estádios de R$ 7,5 bilhões, mas só de repasse para a educação básica em 2014 serão R$ 58 bilhões. E, detalhe: nos 7,5 bi para estádios, não existe um centavo sequer do Governo Federal. São empréstimos, mediante apresentação de garantias, feitos por prefeituras e governos estaduais, em parceria com empresas privadas, no BNDES. Cidades e estados se inscreveram para sediar os jogos da Copa. Ninguém foi obrigado. Não gostou? Reclame com seu prefeito ou com o seu governador, mas não com o Governo Federal (fonte: http://www.orcamentofederal.gov.br/orcamentos-anuais/orcamento-2014/ploa/volumeI_PLOA2014.pdf).
 
Também importa observar o estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), realizado por consultoria ao Ministério dos Esportes, que mostrou que a Copa do Mundo de 2014 vai gerar R$ 183 bilhões para a economia brasileira num período de dez anos, a partir de 2010 até 2019, entre impactos diretos -- investimentos em infraestrutura, turismo, empregos, impostos, consumo -- e indiretos, que é a recirculação de todo esse dinheiro no país, o que representa 0,4% do Produto Interno Bruto (PIB) acumulado no mesmo período.
 
Portanto, não adianta repetir palavras de ordem como papagaios ou boiada que vai atrás do primeiro boi que passou (atitude que, aliás, tem sido extremamente comum ultimamente na esquerda). É tempo de questionar as mensagens virais mais a fundo para tornar o impacto da luta política mais eficiente. As palavras têm peso e devem ser empregadas adequadamente e com responsabilidade. Quando necessário mudar o discurso, que tenhamos discernimento, coragem, honestidade e energia para fazê-lo.
 
O pessimismo em relação à conjuntura político-econômica nacional é disseminado a todo momento pela grande mídia. A presidenta Dilma denunciou a existência dessa guerra psicológica, que prejudica o país, em sua mensagem de final de ano aos brasileiros, transmitida por rádio e TV. Só não chegou a afirmar com todas as letras quem é que conduz essa guerra, a mídia oligopólica. Não à toa, essa mídia tem se esforçado para fazer campanha contra a realização da Copa do Mundo de 2014 aqui no país. Querem aproveitar a oportunidade para insuflar os ânimos do contra.
 
Acontece que é muito simplista o discurso do contra, da negatividade reproduzida, cega e genérica. Digo o mesmo sobre a negação da política e do Estado, tão ventilada nas manifestações de rua do ano passado. Acho que esse discurso de negação pura e simples traduz uma postura de quem quer apenas se ver "fazendo alguma coisa", nem que seja gritando "não", mas que, na verdade, permanece em um tipo de zona de conforto. É muito mais fácil expressar insatisfação apenas negando um tudo que é tão tudo que não é nada de concreto, como um esperneio, do que se colocar na linha de frente da pressão apontando os caminhos políticos que queremos seguir. Flanar no vazio não é presença, não é participação efetiva.
 
A ideia do movimento Occupy, que começou em 2011 com o Occupy Wall Street, é sobre a necessidade de que o povo preencha os espaços de poder carentes de povo. Ocupação, sim, é participação de verdade. Em uma democracia, o Estado é o espaço de poder do povo por excelência, mas não é o único. Interferir nos negócios da Copa, por exemplo, é salutar. Falar mal, negar sem se inteirar e sem cuidar de se colocar por dentro para tentar orientar os rumos do empreendimento é, senão infrutífero, bastante insuficiente.
 
Mas esse discurso de presença substancial, de ocupação, é só para quem tem muito mais fôlego e disposição do que os que só gritam "não" e aparecem na foto como se estivessem do lado dos "bonzinhos" da história. Sem maniqueísmo e levando muito mais a sério a política, a Realpolitik, prefiro a voz da minha consciência do que a desse admirável gado novo.
 
Por coerência, lembrei do post Ocupar o Estado e a cibernética

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Bisa Beauvoir


Simone de Beauvoir completaria hoje 106 anos, feliz aniversário! A data é um marco para festejar a evolução do processo de libertação das mulheres (e dos homens), no qual a participação dessa filósofa é fundamental. 
Pois, como ela disse com pioneirismo, não se nasce mulher, torna-se (e, implicitamente, não se nasce homem, torna-se). Do feminismo ao queer, não há liberdade sem reconhecimento de igualdade. Somos humanos, gênero segrega. É preciso enxergar isso e reiterar para sempre que O Segundo Sexo é obra fulcral para toda formação intelectual crítica. Viva!

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

A vida é um texto

“Senão uma verdade das grandes, uma verdade tipográfica”.

A vida de cada um é sempre um texto. Há quem diga que é roteiro de filme, dramaturgia, letra de música ou até romance, mas, sem precisar me valer de metáforas, minha afirmação é literal.
Habituamo-nos a associar o significado de texto somente ao conjunto de palavras dispostas ou gravadas sobre alguma superfície a partir das quais é possível realizar uma leitura, extraindo-se dela um sentido coerente e coeso. Acontece que texto não é só o que está escrito. Texto também pode ser falado, desenhado e representado. O essencial é que componha um conjunto de enunciados inter-relacionados formando um todo significativo.
Da perspectiva individual, sobretudo a partir dessas janelas da alma que são os olhos, a gente lê a vida. Para exemplificar, passo a descrever a realidade ao meu redor: sentada na cadeira, na minha sala de trabalho, digito estas palavras. Passa um mosquito. Sigo sua trajetória por uns instantes, que me leva a olhar para fora. O dia é lindo, pleno verão de... 2014! Quem diria...
Pronto, eis uma fração da minha vida – ou um subconjunto do meu conjunto universo particular. Um texto que não era escrito até segundos atrás, mas, ainda assim, um texto. Apenas me dei o trabalho de passá-lo a esta forma escrita. Portanto, desde o momento em que aprendemos a ler a vida e que nossos cérebros permitem essa leitura, reitero: a vida de cada um é um texto.
Pena que tem tanta gente ruim em interpretação de texto e avacalha tudo. Talvez eu seja uma delas. Ou não.