sábado, 6 de setembro de 2014

Rancière explica

Esta entrevista de Jacques Rancière ao jornal O Globo vai direto ao ponto sobre o que chamamos de democracia nas sociedades contemporâneas. Ótima peça de divulgação científica – de ciência política:



O que significa o ódio à democracia que dá título ao livro?

Quis analisar e criticar uma tendência muito forte na França, cuja particularidade é tomar a democracia não como forma de Estado, mas como forma de vida em sociedade. Este ódio denuncia uma pretensa invasão da igualdade e do igualitarismo em todos os domínios da vida e a relação com uma figura central: o indivíduo da sociedade de consumo de massa, que o ódio à democracia acusa de ser destruidor de todos os laços sociais tradicionais. O que esse ódio expressa é o ódio à igualdade, e está acompanhado do recuo efetivo da democracia e da igualdade nesses Estados. A democracia, no estrito senso desse termo, é o poder do povo, o poder de qualquer um, dos que não estão destinados ao exercício do poder por nascimento, riqueza, conhecimento científico ou qualquer qualidade especial.


O senhor afirma que as sociedades, tanto no presente quanto no passado, são organizadas pelo jogo das oligarquias. Não existe governo democrático propriamente dito?

Insisti no fato de que o “poder do povo” é impossível de ser contido em uma fórmula constitucional. Há uma contradição entre esse poder e a forma estatal em geral, que é sempre uma forma de privatização do poder de todos em benefício de uma minoria. Por um lado, isso quer dizer que o poder do povo deve ter seus organismos e suas formas de ação autônomas em relação às formas estatais. De outro lado, isso quer dizer que aquilo chamamos de democracia representativa é um modelo misto, submetido a duas formas contraditórias. De um lado, nossos Estados se afirmam como emanação do poder do povo. Mas o poder do povo supõe ou bem um sorteio, ou bem mandatos eleitorais curtos, não acumuláveis e não renováveis. Nós temos exatamente o contrário disso: uma classe de políticos profissionais cujas frações concorrentes governam em alternância, seguidos de análises e de soluções imaginadas por especialistas e por comissões refratárias ao controle popular. A “democracia” que nossas oligarquias defendem é, de fato, o confisco da democracia.


O senhor afirma que “não vivemos em democracias”, mas recusa leituras como as dos filósofos Hannah Arendt ou Giorgio Agamben, que identificam dentro do estado democrático um estado de exceção. O que são os “Estados de direito oligárquicos” em que o senhor afirma que vivemos?

Não vivemos numa democracia porque a democracia não é uma forma de Estado ou de sociedade, mas um poder que sempre excede as suas formas. Mas isso não quer dizer que nós vivamos em um estado de exceção e que a diferença entre as formas constitucionais seja negligenciável. Nós vivemos em Estados oligárquicos moderados que são fundados sobre um compromisso entre o poder das “elites” e o poder de todos. O sistema eleitoral é, em todos os lugares, um pouco confiscado por uma classe de políticos profissionais que trabalha em colaboração cada vez mais estreita com os representantes das potências financeiras. Em contrapartida, a liberdade de informação, de associação, de reunião e de manifestação permitem a existência de uma vida democrática que transborda as simples formas parlamentares e estatais da representação do povo. Esse é um ponto fundamental na minha concepção da democracia: supõe a existência de um poder próprio do povo em relação à máquina estatal. A democracia não é uma questão de instituições, mas de atividade, uma questão de imaginação. Foi o que aconteceu ontem nas ruas, nas fábricas ou nas universidades, é o que acontece hoje na internet, na circulação de informação e nas formas de mobilização que passam pelas redes sociais, pela ocupação das praças e pela sua transformação em espaço político. A tarefa democrática é dar ao povo uma figura autônoma, separada da que se encontra confiscada pelo poder estatal.

Em certo momento o senhor define a democracia como um processo de luta contra a privatização da felicidade e do bem-estar, como luta contra a separação entre o público e o privado. Por quê?

Frequentemente se considerou a separação entre o público e o privado como uma marca do bom governo, protetor dos indivíduos contra a empreitada estatal. Mas eu gostaria de lembrar que essa separação tinha originalmente outra função: excluir da política a maioria dos humanos, confinando-os à esfera privada. Foi o que aconteceu, por exemplo, com os trabalhadores, durante muito tempo considerados apenas no âmbito doméstico. Foi também o que aconteceu tradicionalmente com as mulheres, consideradas dependentes de seus pais ou maridos e restritas ao campo do casamento ou da família. Mas essas lutas não confirmam os “limites” da democracia. Elas confirmam, ao contrário, as capacidades de sua extensão. Essas formas polêmicas de extensão da democracia transbordam ao que se reduz, frequentemente, nas lutas das minorias defensoras de suas identidades. Trata-se antes de sair da condição de “minoria” na qual está a grande maioria dos humanos, confinados numa condição subalterna.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014