quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Às 7

Estava na rua com amigos e avisto uma marcha ku klux klan (a maioria com a vestimenta característica) vindo em nossa direção, subindo a ladeira. Os cartazes? Pela volta dos militares ao poder e, principalmente, contra a chegada dos médicos cubanos ao Brasil pelo programa Mais Médicos de nosso governo federal. A manifestação já passava em frente à gente e, sentindo que não podíamos assistir aquilo calados, puxei uma vaia. Mal comecei, veio uma garotinha de uns 8 anos e chutou meu útero (que simbologia!). Absolutamente indignada, peguei a menina no colo e a admoestei, não sem antes levá-la para perto de sua mãe, que não estava encapuzada. Surpreendentemente, a mãe concordou com minha atitude – não porque era favorável ao apupo, mas porque, sendo contra o aborto, achou que não faria sentido tolerar o chute no útero de uma mulher. Para ela, esse golpe poderia deixar a esterilidade como sequela.

A marcha segue e eu vou mais adiante ainda, à margem de um rio (quero me afogar?) onde meus amigos preparam um contra-ataque (frases de efeito estampando cartazes de cartolina). 

Entro no rio, o sonho acaba. São sete horas da manhã.  

sábado, 24 de agosto de 2013

Muito além das letras


O pior analfabeto é o analfabeto midiático

“Ele imagina que tudo pode ser compreendido sem o mínimo esforço intelectual”. Reflexões do jornalista Celso Vicenzi em torno de poema de Brecht, no século 21

Celso Vicenzi, no Outras Palavras
Ele ouve e assimila sem questionar, fala e repete o que ouviu, não participa dos acontecimentos políticos, aliás, abomina a política, mas usa as redes sociais com ganas e ânsias de quem veio para justiçar o mundo. Prega ideias preconceituosas e discriminatórias, e interpreta os fatos com a ingenuidade de quem não sabe quem o manipula. Nas passeatas e na internet, pede liberdade de expressão, mas censura e ataca quem defende bandeiras políticas. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. E que elas – na era da informação instantânea de massa – são muito influenciadas pela manipulação midiática dos fatos.
Não vê a pressão de jornalistas e colunistas na mídia impressa, em emissoras de rádio e tevê – que também estão presentes na internet – a anunciar catástrofes diárias na contramão do que apontam as estatísticas mais confiáveis. Avanços significativos são desprezados e pequenos deslizes são tratados como se fossem enormes escândalos. O objetivo é desestabilizar e impedir que políticas públicas de sucesso possam ameaçar os lucros da iniciativa privada. O mesmo tratamento não se aplica a determinados partidos políticos e a corruptos que ajudam a manter a enorme desigualdade social no país.
Questões iguais ou semelhantes são tratadas de forma distinta pela mídia. Aula prática: prestar atenção como a mídia conduz o noticiário sobre o escabroso caso que veio à tona com as informações da alemã Siemens. Não houve nenhuma indignação dos principais colunistas, nenhum editorial contundente. A principal emissora de TV do país calou-se por duas semanas após matéria de capa da revista IstoÉ denunciando o esquema de superfaturar trens e metrôs em 30%.
jornal nacional analfabeto midiático
Bancada do Jornal Nacional (Divulgação)
O analfabeto midiático é tão burro que se orgulha e estufa o peito para dizer que viu/ouviu a informação no Jornal Nacional e leu na Veja, por exemplo. Ele não entende como é produzida cada notícia: como se escolhem as pautas e as fontes, sabendo antecipadamente como cada uma delas vai se pronunciar. Não desconfia que, em muitas tevês, revistas e jornais, a notícia já sai quase pronta da redação, bastando ouvir as pessoas que vão confirmar o que o jornalista, o editor e, principalmente, o “dono da voz” (obrigado, Chico Buarque!) quer como a verdade dos fatos. Para isso as notícias se apoiam, às vezes, em fotos e imagens. Dizem que “uma foto vale mais que mil palavras”. Não é tão simples (Millôr, ironicamente, contra-argumentou: “então diga isto com uma imagem”). Fotos e imagens também são construções, a partir de um determinado olhar. Também as imagens podem ser manipuladas e editadas “ao gosto do freguês”. Há uma infinidade de exemplos. Usaram-se imagens para provar que o Iraque possuía depósitos de armas químicas que nunca foram encontrados. A irresponsabilidade e a falta de independência da mídia norte-americana ajudaram a convencer a opinião pública, e mais uma guerra com milhares de inocentes mortos foi deflagrada. 
O analfabeto midiático não percebe que o enfoque pode ser uma escolha construída para chegar a conclusões que seriam diferentes se outras fontes fossem contatadas ou os jornalistas narrassem os fatos de outro ponto de vista. O analfabeto midiático imagina que tudo pode ser compreendido sem o mínimo de esforço intelectual. Não se apoia na filosofia, na sociologia, na história, na antropologia, nas ciências política e econômica – para não estender demais os campos do conhecimento – para compreender minimamente a complexidade dos fatos. Sua mente não absorve tanta informação e ele prefere acreditar em “especialistas” e veículos de comunicação comprometidos com interesses de poderosos grupos políticos e econômicos. Lê pouquíssimo, geralmente “best-sellers” e livros de autoajuda. Tem certeza de que o que lê, ouve e vê é o suficiente, e corresponde à realidade. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e o espoliador das empresas nacionais e multinacionais.” 
O analfabeto midiático gosta de criticar os políticos corruptos e não entende que eles são uma extensão do capital, tão necessários para aumentar fortunas e concentrar a renda. Por isso recebem todo o apoio financeiro para serem eleitos. E, depois, contribuem para drenar o dinheiro do Estado para uma parcela da iniciativa privada e para os bolsos de uma elite que se especializou em roubar o dinheiro público. Assim, por vias tortas, só sabe enxergar o político corrupto sem nunca identificar o empresário corruptor, o detentor do grande capital, que aprisiona os governos, com a enorme contribuição da mídia, para adotar políticas que privilegiam os mais ricos e mantenham à margem as populações mais pobres. Em resumo: destroem a democracia. 
Para o analfabeto midiático, Brecht teria, ainda, uma última observação a fazer: Nada é impossível de mudar. Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
O analfabeto político
O pior analfabeto, é o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala, não participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida,
O preço do feijão, do peixe, da farinha
Do aluguel, do sapato e do remédio
Depende das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que
Se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia política.
Não sabe o imbecil,
Que da sua ignorância nasce a prostituta,
O menor abandonado,
O assaltante e o pior de todos os bandidos
Que é o político vigarista,
Pilanta, o corrupto e o espoliador
Das empresas nacionais e multinacionais.
Bertold Brecht

Somos espelhos e mais

"Ser ou não ser, eis a questão." (Shakespeare)
Questão, do verbo latino que quer dizer buscar.
"Fazer de si mesmo uma grande questão" é recomendação desde Santo Agostinho.



"Algumas pessoas te amarão e não será porque você é engraçado, será porque elas precisam rir. Algumas pessoas vão te odiar e não será porque você é arrogante, será porque você se parece com os pais delas. As pessoas não odeiam você por quem você é, elas odeiam a parte delas que você reflete. As pessoas vão te amar, as pessoas vão te odiar, e nada disso terá nada a ver com você".
(Esther & Jerry Hicks)

"Quando Pedro fala de Paulo, eu sei mais de Pedro do que de Paulo". (Freud)

"Quando alguém te faz sofrer, é porque essa pessoa sofre profundamente dentro dela mesma, e o sofrimento está transbordando". (Thich Nhat Hanh)

E transmitimos. 

E também refletimos como espelhos.

"Enquanto você tiver uma imagem de si mesmo, você não terá nenhuma relação com o outro. A questão é: a imagem é formada só por condicionamento? Por certo, ela é fruto do pensamento, que a produz como um "atalho" ou paliativo para gestar a sensação de quem se é, em que espaço se está. Esse mecanismo do pensamento de formar imagens sobre si e sobre os outros impede que se experimente o amor, a relação com as pessoas. Tem-se apenas uma relação fantasiosa. Desse modo, como está agora, não existe amor no mundo, o sentimento verdadeiro de se importar com o próximo. Então, pode essa produção de imagem parar definitivamente? Preencher, preencher... essa é a essência da imagem (Krishnamurti).

"O desejo de o povo buscar uma exteriorização de sua própria imagem num meio de comunicação, ligado mais à imagem, principalmente da televisão, é um fenômeno criado a partir de um vácuo das sociedades pós-industriais que, desde a revolução industrial na Inglaterra, despertou no ser humano uma necessidade de se exteriorizar, se autoprojetar. Hoje, buscando no infinito do mundo das novas tecnologias, essa necessidade se intensifica como forma de recuperar a capacidade lúdica enlatada pela fabricação em massa e em série dos comportamentos herdados por essa nova fase robótica e capitalista retórica." (Cristiane Neder)

Ego. Rótulos. E sempre fomos o que disseram que éramos.

Agora chega. Vamos nós próprios nos dizer quem somos? Passa da hora: ontologiemo-nos.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Democracia e utopia

Utopia é algo que parece inalcançável no momento atual, mas que um dia – acredita-se –, pode vir a acontecer. A democracia, por exemplo, é uma grande utopia.  A maioria dos países do mundo concordou que ela é o melhor sistema de governo desde a segunda metade do século XX. A partir daí, multiplicaram-se constituições anunciando a existência de democracias nos quatro cantos do mundo, como se tal formalidade conferisse automaticamente essa qualidade aos respectivos estados. É evidente que um adequado arcabouço institucional, com o princípio do devido processo legal em sua espinha dorsal, é uma garantia imprescindível ao funcionamento de uma democracia, mas isso sinaliza apenas um começo de transformação da utopia em realidade. É que, ao contrário do que quer a opinião dominante (shumpeteriana), nem só de formalidades uma democracia acontece.
 
Na verdade, a fachada institucional de democracia dá legitimidade para que a ditadura continue firme e forte, ainda que operando "por baixo dos panos". Daí o esforço (bem sucedido) dos grandes conglomerados da imprensa mundial em fazer com que o senso comum acredite, por exemplo, que os Estados Unidos são um país muito democrático. O sentido moral de democracia, a democracia como governo do povo, e não como domínio de privilegiados, está longe da realidade naquele país e em tantos outros.

A verdadeira democracia, portanto, vai muito além da votação de tempos em tempos para a escolha de representantes pelos representados. Ela começa em cada indivíduo, no cotidiano, cada um fazendo de sua própria vida um conjunto de práticas e pensamentos democráticos. É possível, embora utópico. É uma luta por subjetividades, não simplesmente por procedimentos – estes apenas devem refletir valores cultivados pela sociedade. O socialismo é só um desdobramento natural disso (claro, não me refiro aqui às distorções do significado de socialismo que os acontecimentos históricos produziram).

Em que pese o esvaziamento ou a troca de sentido que os vocábulos democracia e ditadura sofrem, o que importa é enxergar nossas verdadeiras amarras para que possamos desatá-las e, enfim, nos libertarmos.
  

O grande ditador (Chaplin) – 1940 

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Queer é o poder

"A menos que o sexo desapareça, a união, o não-dual (Brahma) não acontece." (Osho)

Vem o movimento queer e afirma que ser homossexual já está capturado na heteronormatividade. Homossexual, bissexual, lésbica ou gay, isso por si só não é suficiente. É preciso escapar da divisão binária homem/mulher ou hetero-homo. Desistir de pretender definir-se pela negação do outro, pela imagem que o outro faz do que você (não) é. Porque isso já é definir-se por meio do normal, na medida de sua exclusão. Por isso, LGBT é muito pouco. Nem todas as letras do alfabeto poderiam cobrir a sexualidade humana. Ela é polimorficamente perversa e a culpa não tem vigência. O queer não quer se casar e adotar filhos pra ter uma família aburguesada e banal. Ele realmente não vai criar os filhos como um casal heterossexual normal e essa é a sua maior qualidade! Recusa a própria ideia de uma normalidade, de uma saúde mental, e também não cai no papai-mamãe-filhinho da psicanálise freudiana.
 
A sensibilidade queer está bem representada no pós-estruturalismo linguístico, na antropologia diferencial, na desconstrução, em Deleuze e Lacan. Está na vanguarda de uma luta que politiza o desejo. Sua ontologia da diferença incide imediatamente em movimentos feministas, nas lutas raciais, na questão dos imigrantes e da Palestina. Transcende as etiquetas e expectativas, implica uma microfísica do poder, desestabiliza as narrativas bonitinhas do governo, da psiquiatria, da própria esquerda. Mas não quer se fazer invisível, como se não existissem alegres em sua gaia ciência. E sim saturar as relações de múltiplas formas de vida, por uma maneira menos ordinária de viver a liberdade. É tornar visível e principalmente vivenciável o universo de amor, desejo e prazer que constitui o ser humano nas suas várias camadas. Uma política queer pode realmente perturbar o sistema político-econômico dominante, de encontro à mercantilização de segmentos sociais, sua imagem publicitária e seu desejo pré-fabricado. O queer é revolucionário.
 
 
(Por Bruno Cava. “Queerpunk: além do movimento gay”, Blog Amálgama, 20/10/2011).

sábado, 17 de agosto de 2013

Intelectual quem? – a lição de Edward Said

Um dos livros que mais amo é o "Representações do intelectual", de Edward W. Said. De leitura leve –trata-se, na verdade, de uma compilação de seis conferências transmitidas pela BBC, as Conferências Reith –, contém mensagem da mais alta importância nestes tempos em que se atribui tanta autoridade aos ditos "especialistas" e "formadores de opinião" : o que é ser intelectual?

De cara, antecipo que não é para qualquer um. Pensarão: "claro, é necessário estudar muito". Não, não foi isso que quis dizer. Há essa leitura tradicional da classe intelectual como sendo formada por professores, clérigos, advogados, comunicadores, administradores etc. que, geração após geração, continuam a fazer a mesma coisa e, assim, como 2 e 2 são 4, os estudiosos acabam se reputando membros da intelectualidade mundial só pelo conhecimento que adquiriram. Mas eu havia dito que "não é para qualquer um", né? Pois então, explico. Para mim, não desce essa representação do intelectual como qualquer erudito beletrista blasé. Seria muito fácil se fosse só isso, mas a classificação requer características que vão muito além da pose. 

Said vai ao ponto: intelectual que é intelectual tem que falar a verdade ao poder. É aquele indivíduo ríspido, eloquente, fantasticamente corajoso e revoltado, para quem nenhum poder do mundo é demasiado grande e imponente para ser criticado e questionado de forma incisiva. Intelectual é quem enxerga as verdadeiras injustiças e problemas do mundo e, por isso mesmo, acaba se vendo à parte, até como um "exilado" ou um náufrago que aprende a viver com a terra, mas não nela. Não responde à lógica do convencional. Não pode ser facilmente cooptado por governos ou corporações e sua raison d'etre é representar todas as pessoas e todos os problemas que são sistematicamente esquecidos ou varridos para debaixo do tapete. Assim, o intelectual age com base em princípios universais: que todos os seres humanos têm direito de contar com padrões de comportamento decentes quanto à liberdade e à justiça da parte dos poderes ou nações do mundo, e que as violações deliberadas ou inadvertidas desses padrões têm de ser corajosamente denunciadas e combatidas. O importante é causar embaraço, ser do contra e até mesmo desagradável. O objetivo da atividade intelectual é promover a liberdade humana e o conhecimento.

As representações intelectuais são dependentes de um estado de consciência que é cética, comprometida e incansavelmente devotada à investigação racional e ao juízo moral; e isso expõe o indivíduo intelectual e o coloca em risco. Saber como usar bem a língua e saber quando intervir por meio dela são duas características essenciais da ação intelectual.

Não há dúvida de que o intelectual deve se alinhar aos fracos e aos que não têm representação. É alguém que empenha todo o seu ser no senso crítico, na recusa em aceitar fórmulas fáceis ou clichês prontos, ou confirmações afáveis, sempre tão conciliadoras sobre o que os poderosos ou convencionais têm a dizer e sobre o que fazem. Não apenas relutando de modo passivo, mas desejando ativamente dizer isso em público. O estado de alerta é constante, de disposição perpétua para não permitir que meias verdades ou ideias preconcebidas norteiem as pessoas. A tarefa do intelectual é universalizar de forma explícita os conflitos e as crises, dar maior alcance humano à dor de um determinado povo ou nação, associar essa experiência ao sofrimento de outros. Relacionar esses horrores a aflições semelhantes de outros povos, em prevenção, para evitar que uma lição sobre a opressão aprendida em um determinado lugar seja esquecida ou violada em outra época ou lugar.

O intelectual deve ser alguém que, ao se considerar membro pensante e preocupado de uma sociedade, se empenha em levantar questões morais no âmago de qualquer atividade, por mais técnica e profissionalizada que seja. E falar a verdade ao poder não é idealismo panglossiano: é pensar cuidadosamente as alternativas, escolher a certa e então representá-la de maneira inteligente, a partir da qual possa fazer o maior bem e causar a mudança correta.

(Fica a dica).

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Boa sexta

Bruno Torturra: neste meu bloguinho, neste cantinho da internet que provavelmente você nunca verá, fica toda a minha solidariedade. Compartilho aqui seu texto publicado hoje:
 
DESCULPE A MINHA CARTA
 
Ando, e avisei que estaria, distante do Facebook. Além de muito trabalho a ser feito, mais do que me é possível, prefiro não me implicar emocionalmente em uma discussão que me parece ainda longe de ser racional, suficientemente informada e produtiva sobre a Mídia Ninja.

Mas hoje, com a publicação do texto da Carta Capital, ficou impossível ignorar o assunto. Ou não me implicar emocionalmente. Foi um amigo de longa data que escreveu.

Eu poderia dar uma resposta. Rebater as mentiras e as injustiças que ele escreveu a meu respeito. Entupir um texto de exemplos arbitrários e enviezados de nossa vida pessoal para descredibilizá-lo. Mas prefiro usar a oportunidade para dizer algo que me tranquiliza nesse furação todo.

Descobri que enquanto a agressão é pública, a solidariedade é privada. Melhor assim. E há uma lição poderosa nisso.

Estou passando por uma crise difícil, mas muito didática. Me obrigando a examinar com muito cuidado os princípios, as intenções que me fizeram praticamente largar minha estável carreira privada para arriscar uma vida mais pública e, na medida do possível, mais coletivista.

Nesse processo de recolhimento, reflexão e muita conversa, cada vez mais encontro conforto e propósito na essência da minha formação política. Confesso... as experiências psicodélicas.

Foi com o LSD, a ayahuasca, os cogumelos, a mescalina e sobretudo com o amor dos amigos que seguiram juntos nessa exploração que aprendi certas coisas:

- Não vemos o mundo como ele é, mas como nós somos. Tão clichê quanto real. Nossas ações e ideologias são frutos disso. A atenção e a transformação do mundo pressupõe atenção e transformação internas. Constante.

- É preciso oferecer mais do que se demanda. Dar mais do se pede em troca. Construir mais do que destruir. Essa é a única conta que realmente interessa na esfera pública e no caminho espiritual. Para mim, é a chave da evolução pessoal e coletiva.

- Não há porque sentir raiva, não há porque dar o troco. Não há prato algum para se comer frio. Essa talvez seja a mais difícil de recordar em momentos como esse. Mas o verdadeiro carma é instantâneo: o agressor já está punido sendo quem ele é. E, por isso, nesse caso, sigo me considerando seu amigo e de sua ótima família.

Dito isso, bola pra frente. As únicas coisas que tento levar para o lado pessoal são o carinho e o apoio de tanta gente que, por trás desse nevoeiro, entende o que está em jogo. Não me deixa sozinho.

E me fazem entender, cada vez mais, que honestidade, amizade, confiança, generosidade, trabalho e elegância não são apenas mais importantes do que mídia e política. Deveriam também ser a base dela.

Boa sexta.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Avante, Fora do Eixo!

Não se constrói um novo mundo de um dia para o outro. Enquanto não chegamos lá, é salutar preservar os pedacinhos de mundo novo que convivem bravamente com o grande mundo velho, a fim de que, um dia, o domínio do velho se torne insustentável diante do novo. Velho é o ambiente pesado e desgastante do capitalismo, do individualismo, do ego. De tão estabelecido, nem todos conseguem se ver sem esse modo de vida e oferecem forte resistência ao que pode vir de novo e, assim, posso compreender os ataques ao Coletivo Fora do Eixo - FdE, grupo que tem todo o meu respeito, admiração e entusiasmo porque representa, sim, um novo que vem resistindo à vetusta lógica geral que ancora o modo de organização sócio-político-econômica globalizada.
 
Surpreendentemente, eis que me deparo com um bom texto do Francisco Bosco sobre os julgamentos apressados sobre o Fora do Eixo:

Do jornal O Globo

Acusados e acusadores

Melhor nos preocuparmos com os verdadeiros inimigos da democracia

O GLOBO
Francisco Bosco
O colunista escreve às quartas-feiras

Começo com uma declaração sobre meu lugar de enunciação, como diz o jargão teórico: estou mais para mainstream do que para independente; a experiência de obras de arte tem lugar fundamental na minha vida; sou a favor de licenças que flexibilizem os direitos autorais, sem me confundir com os que se engajam em práticas de esvaziamento da ideia de autoria ou defendem a supressão dos direitos a ela atrelados; meu devir revolucionário, isto é, minhas propostas de reinvenção da vida se situam mais no campo das ideias e das relações afetivas privadas do que no campo da política (considerada no sentido que lhe dá Badiou: O que pode uma coletividade?); finalmente, sou associal, e em boa parte do tempo até antissocial, logo estou mais para Thoureau que para Fourier, mais para solitário que para comunidade.
Digo isso para esclarecer que não tenho nenhuma razão de interesse pessoal no Fora do Eixo, já que eles praticam quase tudo o que não sou e não quero ser: circuito independente, privilégio da experiência da política em detrimento da experiência da arte; ataque à ideia de autoria individual; reinvenção de formas de vida com ênfase nas potências da coletividade; vida em comunidade, com esvaziamento radical da esfera privada. Não me interesso, pessoalmente, por nada disso, mas tenho todo o interesse em que pessoas diferentes de mim tenham resguardado o seu direito de reinventar as formas de vida da maneira como melhor lhes convir sem que sejam denunciadas, moralizadas, criminalizadas ou simbolicamente linchadas por causa disso. Pois foi exatamente o que sofreu o Fora do Eixo nos últimos dias.
Deflagrada sobretudo pelo depoimento pessoal da cineasta Beatriz Seigner, uma enxurrada de comentários e compartilhamentos chegou ao veredito mais rápido de que já tive notícia na era das redes sociais. De herói e arauto da contemporaneidade, Pablo Capilé (e o Fora do Eixo) subitamente se transformou em ditador, estelionatário, sexista, explorador da força de trabalho alheia, manipulador de jovens mentes indefesas, líder de seita, entre outros epítetos igualmente glamourosos. Mas na transformação do príncipe em sapo há mais economia do narcisismo do que revelações factuais ou argumentações arrasadoras.
Pois chamam a atenção os erros de interpretação e a natureza gravemente equivocada do relato pessoal de Seigner (que entretanto transborda de imaginário). Atravessa o seu texto um problema lógico: ela acusa o coletivo de não ser algo que, precisamente, ele não quer mesmo ser (reprodução da autoria individual com todos os seus corolários). E, pior, um problema ético: confunde crítica com denuncismo, esfera simbólica com esfera penal. Uma coisa, cabível e desejável, é interpretar fenômenos públicos, com o mais radical dissenso, se for necessário. Outra coisa é fazer acusações legais (ruptura de contrato), morais (manipulação de vítimas psicológicas) ou absurdas e irresponsáveis (trabalho escravo). Pois bem, acusações legais pertencem ao domínio jurídico, onde se devem apresentar provas, sem as quais cabe ao acusador o ônus da calúnia e suas consequências penais. Isso vale para as acusações de Seigner (sobre o caso Sesc, por exemplo), para a Veja (que os acusou de estelionato, segundo o FDE), e para todos que embarcaram no uso irresponsável de termos como trabalho escravo.
Sem ter mais espaço, observo que, para mim, o essencial sobre o FDE se resume a isso: entra quem quiser, ninguém é obrigado. Há críticas interessantes que foram feitas (o produtivismo desenfreado em contradição com a crítica ao capitalismo, a desmonetização como uma mais-valia às avessas, a concentração da obtenção de editais), mas é fundamental jogar o jogo da crítica e, nesse momento rico em aberturas, manter a independência de pensamento, recusar os julgamentos apressados, distinguir crítica de denúncia e não se deixar levar pelos mecanismos imaginários de reversão que transformam a admiração em inveja, a generosidade em vingança principalmente se eles forem disparados por uma mobilização grupal, com a covardia que isso implica. Caso contrário, os acusadores assemelhar-se-ão realmente aos seus acusados imaginários.
Enquanto isso, até o dia em que escrevo, 13 bravos cidadãos permanecem ocupando a Câmara dos Vereadores. Não percamos de vista os verdadeiros inimigos da democracia: os vereadores que se apoderaram da CPI dos Ônibus para esvaziá-la, e que com isso reproduzem os procedimentos de blindagem da classe política e seus cupinchas contra os interesses dos cidadãos. Nesse caso, é possível, sim, evocar esse sujeito coletivo, pois são os elementos mais básicos do pacto social que estão sendo desrespeitados, mais uma vez.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

PSol e o recalque político

Na arte de conciliar interesses que é a política, o estudo da psicologia deveria ser levado mais em conta a qualquer um que queira compreender o comportamento dos players em cena, sem traduzir uma inclinação ao behaviorismo. Costumo dizer que os mundos da política e do sexo têm isto em comum: ambos são âmbitos onde as principais questões de uma pessoa se revelam. É preciso ter a perspicácia de identificá-las e jogar com elas, ter o famoso jogo de cintura e contorná-las -- do contrário, a "surtação" humana acaba te levando para longe do caminho do equilíbrio. O filósofo Slavoj Zizek, por exemplo, traz o ingrediente da psicologia em suas análises. No entanto, a disciplina se mantém geralmente afastada do repertório acadêmico de estudos políticos -- talvez justamente em razão do "trauma" que o paradigma comportamentalista deixou na ciência política.
 
Acontece que a política é feita por gente, e cabeça de gente é doente. Uns mais, outros menos, mas todo mundo tem suas neuroses. Enquanto não nos assumirmos doentes nesse sentido, o amadurecimento coletivo que a vida requer de nós parece tarefa impossível. Os pensadores clássicos já identificavam essa problemática, mas a colocavam em termos como "a razão é escrava das paixões" (Hume). Ora, o que são paixões? São justamente sentimentos aos quais nos apegamos a ponto de prejudicar um equilíbrio entre razão e emoção em nossas vidas. Mas, recobrar a sensatez -- ou pensar com o coração de maneira justa -- não é nada fácil e, muitas vezes, a tarefa esbarrará em mais sentimentos que se armam em muralhas: o orgulho, o revanchismo, a inveja, o recalque. Pobres de nós.
 
Do Dicionário Informal, recalcada é a pessoa que se sente ameaçada ou insegura e critica os supostos responsáveis por coisas erradas na visão dela. Uma pessoa recalcada tira conclusões equivocadas, baseadas em suposições quando sente uma ameaça contra si e seus valores. O recalque é uma defesa da personalidade, pessoas se recalcam porque se sentem ameaçadas.
 
No plano político-partidário brasileiro, também é possível identificar claramente várias expressões do recalque, entra elas o Partido Socialismo e Liberdade - Psol, legenda criada por gente que foi do PT, mas não suportou ver seus dogmas enfraquecidos diante do jogo do poder. Agora vejamos se tem cabimento.
 
Nada contra alianças políticas, fazem parte do jogo, mas o Psol se diz higiênico demais para fazer aliança com partidos como o PT e o PCdoB, porém, embora de maneira dissimulada, sempre vota junto com o PSDB e o DEM, muito mais do que vota com o PT nas sessões do Congresso Nacional. A aliança com a direita também se realizou nas eleições passadas, em que o Psol fechou com o PPS em Macapá. A “coligação com o PSDB não está contemplada, porém o diálogo com todas as expressões da política é democrático e faz parte da conduta civilizada”, chegou a declarar o senador Randolfe Rodrigues (Psol-AP). Para tentar chegar ao segundo turno, Marcelo Freixo disputou a o apoio do deputado federal Fernando Gabeira (PV), que concorreu à prefeitura do Rio com apoio do DEM e do PSDB.
 
Freixo (Psol-RJ) também tentou convencer Marina Silva (ex-PV) a gravar um vídeo de apoio a sua candidatura. Nas eleições presidenciais passadas, a candidatura de Marina Silva foi um recurso do PSDB para jogar as eleições para os segundo turno, evitando a derrota acachapante no primeiro turno das eleições. Ao mesmo tempo que apoia Freixo no Rio, Marina Silva apoia Soninha, do PPS, uma sublegenda do PSDB, à prefeitura de São Paulo.
 
Para tentar chegar ao segundo turno, no entanto, Freixo aceitou o apoio da vereadora Andrea Gouvêa Vieira, que era uma das preferidas dentro do PSDB para a disputa a prefeitura do Rio, mas que perdeu na disputa interna no partido. Andrea Gouvêa pediu licença à direção regional do PSDB para não apoiar o candidato do seu partido e apoiar Freixo nas eleições. Freixo possui também um programa direitista para o governo do Rio, por isso conta com o apoio da direita e da burguesia. Em seu programa consta a ampliação das chamadas “Unidades de Polícia Pacificadora” (UPPs), que tanto ataca como sendo um instrumento estatal repressivo nas favelas. Quando questionado também sobre como tratará as greves se for eleito, Freixo fez questão de falar que irá tratar as greves com “pulso firme” e que até mesmo defende o corte do ponto dos grevistas, como fez recentemente a presidente Dilma Rousseff com os servidores federais em greve, “dependendo da situação”.
 
O Psol, tão ferrenho contra o PT, não enfrenta a mídia tucana, não quer se indispor com ela de jeito nenhum. Sempre no marketing de jogar para a plateia, só quer agradar a opinião pública, sobretudo a classe média "esquerda de boutique", gente que jamais se assumiria de direita, que posa de intelectual, mas não consegue superar sua perspectiva de classe bem marcada. 
 
E agora, na mesma cara de pau de sempre, cujo verniz de correção só cola com os mais ingênuos, o Psol votou contra a instalação da CPI dos Transportes em São Paulo, mas a favor no Rio de Janeiro. Por que? Me parece óbvio: em Sampa, o governador é tucano; no Rio, é do PMDB, que está na base do governo federal ao qual o Psol faz birrenta e recalcada oposição. Vale tudo para atingir o PT.
 
Vai um divã coletivo aí?

sábado, 10 de agosto de 2013

Retrô feminista

A Igreja católica foi implacável com qualquer mulher que desafiasse os princípios por ela pregados como dogmas insofismáveis. Porém, a chamada primeira onda do feminismo aconteceu a partir das últimas décadas do século XIX, quando as mulheres, primeiro na Inglaterra, se organizaram para lutar por seus direitos, dos quais o primeiro a se popularizar foi o direito ao voto. As sufragetes – como ficaram conhecidas – promoveram grandes manifestações em Londres, foram presas várias vezes, fizeram greves de fome. Em 1913, na famosa corrida de cavalo Derby, a feminista Emily Davison atirou-se à frente do cavalo do rei, morrendo. O direito ao voto foi conquistado no Reino Unido em 1918.

No Brasil, a primeira onda do feminismo também se manifestou mais publicamente por meio da luta pelo voto. As sufragetes brasileiras foram lideradas por Bertha Lutz, uma bióloga e cientista importante, que estudou no exterior e retornou ao Brasil na década de 1910, iniciando a luta pelo voto. Esse direito foi conquistado, entretanto, somente em 1932, quando foi promulgado o Novo Código Eleitoral brasileiro.

Esse feminismo inicial, tanto na Europa e nos Estados Unidos como no Brasil, perdeu força a partir da década de 1930 e só apareceu novamente, com importância, na década de 1960. No decorrer desses trinta anos, um livro marcou as mulheres e foi fundamental para a nova onda do feminismo: O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, publicado pela primeira vez em 1949.

Betty Friedan lançava, em 1963, o livro que seria uma espécie de bíblia do novo feminismo: A mística feminina. Durante a década, na Europa e nos Estados Unidos, o movimento feminista surge com toda força; as mulheres, pela primeira vez, falam diretamente da questão das relações de poder entre homens e mulheres. Aponta, e isto é o que há de mais original no movimento, que existe uma outra forma de dominação além da clássica dominação de classe, a dominação do homem sobre a mulher, e que uma não pode ser representada pela outra. Cada uma tem suas características próprias.

Enquanto o mundo desenvolvido fazia sua revolução sexual, o Brasil enfrentava anos de chumbo. Com a redemocratização dos anos 1980, o feminismo brasileiro entra em uma fase de grande efervescência na luta pelos direitos das mulheres. Uma das mais significativas vitórias foi a criação do Conselho Nacional da Condição da Mulher (CNDM), em 1984. Do esforço resultou a Constituição de 1988, uma das que mais garante direitos para a mulher no mundo todo. O CNDM perdeu completamente a importância com governos Collor e Fernando Henrique Cardoso. Já no primeiro governo Lula foi criada a Secretaria Especial de Política da Mulher, com status de ministério, e recriado o Conselho, com características próximas do que havia sido originalmente. Ainda é mister apontar para as duas Conferências Nacionais para a Política da Mulher ocorridas em 2005 e 2007, que mobilizaram mais de 3 mil mulheres e produziram alentados documentos de análise da situação da mulher no Brasil.

Com o advento das redes sociais, reunindo interesses comuns, vemos o feminismo brasileiro ganhar ainda mais fôlego. Há muito trabalho pela frente.

Fonte: PINTO, Célia Regina Jardim. Feminismo, história e poder.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Falta quem pense

Editorial de Mino Carta publicado hoje em Carta Capital toca exatamente no ponto que eu já queria ter abordado por aqui. Após assistir ao filme Hannah Arendt, de Margarethe von Trotta, expõe-se que as lições daquela filósofa alemã também valem para o Brasil:

"O homem é um bicho imperfeito, muito imperfeito, a gente sabe. Dispõe dos instrumentos para pensar, mas a maioria não sabe usá-los. A maioria felizmente não é de criminosos nazistas, mas é incapaz de fugas do clichê, do chavão, do lugar-comum, da frase feita. Deste ponto de vista, a sociedade emergente do Brasil é imbatível, ipsis litteris repete incansável as passagens mais candentes dos textos de jornalões e revistões enquanto os jornalistas aderem automaticamente às crenças dos seus patrões. Na terra da casa-grande e da senzala, a maioria vive ainda no limbo e os senhores jogam ao lixo o patrimônio Brasil. O mundo atravessa dias decadentes, é inegável. O País, contudo, bate recordes nestas areias movediças."

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Democracia século 21: haverá vida além da comunicação viral?

Observando o entusiasmo como certos intelectuais de esquerda têm em conta as mobilizações sociais dos dias correntes aqui no Brasil, parece até que sou um poço de ceticismo – logo eu, que sempre fui considerada otimista demais. Não é que eu seja contra as manifestações de rua, muito pelo contrário, acho que elas elevam a temperatura da política, tornam visíveis e populares o debate de ideias e o confronto entre visões de mundo, o que provoca reflexão e, consequentemente, estimula o desenvolvimento/amadurecimento/conscientização de cada envolvido (passiva ou ativamente).

O grande problema, a meu ver, é a ilusão de acreditar que essas manifestações seriam expressão de quem está acordado ou pelo menos acordando frente às questões políticas, em demonstração de radicalização da democracia: deixa-se, desse modo, de dar o devido valor à qualidade da formação de opinião subjacente a essas manifestações, o que me parece grave. 

É claro que esses movimentos atuais são muito mais reflexos da comunicação viral do que de uma formação mais consistente de pensamento. Questiono: esse tipo de comunicação, viral, típica das redes sociais, é base capaz de sustentar a democracia que queremos? Teremos um verdadeiro governo do povo graças a essa espécie de difusão massificada de ideias em mensagens-pílulas, que formam opinião no estilo fast food geralmente acompanhadas de forte apelo emocional?

Francamente, o que pode transformar a estrutura do sistema político-econômico de uma sociedade é a efetiva conscientização política dos cidadãos, o esclarecimento responsável e bem fundamentado movido por virtudes cívicas. Sem o ingrediente básico da consciência, é insuficiente a aparência de engajamento em prol da democracia, por mais justas que sejam as preocupações pontuais expostas. Nesse sentido, não acho nada radical o quebra-quebra de vidraças, a ocupação e nem mesmo a eventual substituição de um governador. Acho superficial. A agitação é positiva? Sim. Mas não é para tanto deslumbramento. Se o objetivo da política é a liberdade, a visibilização da participação política não garante a qualidade da democracia. Pode ser que o grande desafio democrático do século 21 seja transformar o pontapé inicial da capacidade de mobilização através das novas ferramentas tecnológicas em ação perene de aprofundamento da conscientização política em massa. Insistir na fé na comunicação viral é como lançar sementes ao asfalto, ignorando que só em solo fértil elas poderão germinar.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

O que faria uma analista em CT&I, ou como se sentir enganada pelo Diário Oficial

Convidava o edital do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI):

"Exercer atividades relacionadas à gestão governamental nos aspectos técnicos relativos à formulação, implementação e avaliação de políticas públicas, ao planejamento estratégico e ao planejamento de programas e projetos; participar de Comitês, Conselhos, GTs e articular-se com áreas específicas do Governo Federal e estados; elaborar notas técnicas, notas informativas e pareceres; promover a mobilização e a capacitação (presencial e à distância) dos diversos segmentos da sociedade para o enfrentamento das problemáticas de ciência, tecnologia e inovação; articular e integrar a ciência, tecnologia e inovação com as políticas públicas desenvolvidas pelo Governo Federal; desenvolver ações de comunicação e elaboração de materiais educativos; elaborar parecer e outras formas de relatórios técnicos; organizar oficinas de trabalho; articular-se com a sociedade, apresentar palestras; participar de Comitês, Conselhos, entre outros e articular-se com áreas específicas do Governo Federal, estados e municípios; acompanhar e avaliar a execução da Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação 2012 - 2015 – Balanço das Atividades Estruturantes; assistir tecnicamente à Secretaria-Executiva na elaboração e revisões do Plano Plurianual e do Orçamento Anual, em suas áreas de atuação; dentre outras atividades da mesma natureza e grau de complexidade, que venham a ser determinadas pela autoridade superior."


Para quem me pergunta o que faço hoje, eu poderia responder assim. Eu gostaria de responder assim.

Bom, eu faria isso.

Mas, para evitar mais futuros de pretéritos, me despeço por aqui. (É que tive que escrever para não esquecer).

domingo, 4 de agosto de 2013

István Mészáros


Por que não o li antes? Húngaro como Lukács e meus antepassados, István Mészáros é um autor de peso. Ganhei esse livro da imagem acima – Filosofia, Ideologia e Ciência Social – e, embora eu ainda esteja na metade, já posso dizer que é uma daquelas obras necessárias. Primeiro, Mészáros desconstrói a pretensa neutralidade de certas definições teóricas e expõe o caráter ideológico da ciência. No campo de análise (as ciências sociais e econômicas), critica Weber, Homans, Coser, Keynes e Parsons – por vezes com uma ironia fina hilariante.

Logo depois, enfrenta o grande tema da consciência de classe – a necessária e a contingente. A distância entre esses dois aspectos do "ser do proletariado" pode ser maior ou menor em situações históricas diferentes, e nenhum progresso linear na redução da diferença está implícito nas formulações de Marx sobre o problema da consciência de classe. Mas, antes de discutir alguns dos problemas relacionados, Mészaros procede à ênfase em alguns aspectos da obra de Marx, como no trecho a seguir:

"O desenvolvimento da consciência de classe é um processo dialético: é uma 'inevitabilidade histórica' precisamente na medida em que a tarefa é realizada através da mediação necessária de uma atuação humana autoconsciente. Isso requer, inevitavelmente, algum tipo de organização – seja a constituição de partidos, ou de outras formas de mediação coletiva – estruturada segundo as condições sócio-históricas específicas que predominam em uma época particular, com o objetivo estratégico global de intervenções dinâmicas no curso do desenvolvimento social. (Somente as últimas são capazes de deixar uma marca duradoura – em oposição ao sucesso efêmero da mera agitação política – na consciência do proletariado como um todo, uma vez que elas envolvem modificações objetivas no ser social da consciência do proletariado). Em outras palavras, o desenvolvimento "direto"e "espontâneo"da consciência de classe operária – seja sob o impacto de crises econômicas ou como resultado do auto-esclarecimento individual – é um sonho utópico. Não importa quanto (tendo em vista algumas experiências negativas) se possa desejar o contrário, a questão da organização política não pode ser desconsiderada. A questão real é, portanto, a criação de formas organizacionais e mediações institucionais que sejam adequadas aos objetivos estratégicos globais, considerando (a) as limitações sócio-históricas que delimitam objetivamente as possibilidades de ação em cada época, e (b) os limites necessários e os efeitos deturpadores da própria forma institucional, pois um montante indevido de "feedback negativo" de (a) e (b) – que é inevitável até certo ponto – pode não apenas anular conquistas alcançadas com dificuldade, mas também transformar a instituição originalmente dinâmica em um freio poderoso e um grande obstáculo a todo avanço posterior. O elemento paradoxal na dialética das instituições é que a sua estruturação de acordo com as limitações necessárias mencionadas em (a) constitui tanto seus traços positivos quanto suas características negativas de petrificação e autoperpetuação. A habilidade da instituição em enfrentar o desafio de uma situação histórica específica – sua raison d'être – requer firmeza estrutural e estabilidade; entretanto, seu impacto no desenvolvimento sócio-histórico produz não apenas avanços, mas também, ao mesmo tempo, um elemento de obsolescência institucional. (Esse ponto sublinha a superficialidade e o caráter evasivo de todo discurso sobre o "culto à personalidade" como uma hipótese explicativa.) A instituição é dinâmica apenas na medida em que ela se esforce na realização de sua tarefa e adquira uma camada inercial mais ou menos extensiva, no exato momento em que ela obtém domínio. Assim, a vitória de uma forma institucional específica sobre as limitações históricas que estavam em sua raiz é também, ao mesmo tempo, a derrota bem merecida dessa forma institucional. Uma derrota que é, entretanto, frequentemente transformada em uma vitória de Pirro pela instituição obsoleta, mas poderosamente ossificada à custa do corpo social que lhe deu origem. Os corretivos contra esse tipo de desenvolvimento podem e têm de ser incorporados, ou na estrutura de uma instituição particular, tomada em si mesma (na verdade uma possibilidade muito limitada), ou no arcabouço institucional como um todo, cujas partes interagem reciprocamente umas com as outras, ou ainda, tanto nas instituições particulares quanto na estrutura institucional total da sociedade. O desenvolvimento dependerá grandemente da eficácia desse grupo determinado de corretivos na minimização do feedback institucional negativo mencionado acima.
(...)
Sem um conjunto coerente de conceitos fundamentais, os fenômenos efêmeros não podem ser separados daqueles de significado duradouro (empiricismo fragmentário e positivismo). E, sem um intercâmbio dinâmico entre os vários níveis do quadro conceitual, incluindo aqueles que notificam as "mudanças capilares"aparentemente insignificantes dos fenômenos sociais, o marxismo pode degenerar em um catecismo de dogmas com significado fixo e absoluto, (por exemplo, o escolaticismo morto das fórmulas stalinistas). Contrastando com ambos, a concepção marxiana, longe de se refugiar no reino do apriorismo, fornece o quadro conceitual necessário para o estudo teórico empiricamente fundamentado, bem como para a ação política e social."

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Mentes simples confundem sinceridade com grosseria

Tenho uma amiga assim: a cada cinco palavras que emite, três são palavrões. Ela fala super alto, ri das piadas mais chulas e preconceituosas, come feito um bicho e larga os talheres de qualquer jeito sobre o prato, me deixa no vácuo direto, não cumprimenta as pessoas direito e, por várias vezes, é incapaz de fazer uma cortesia alegando "não é problema meu". Chama as próprias amigas de mongóis, débeis, idiotas ou imbecis (tipo: "não é assim, sua imbecil!") – mas ai de quem dá o mesmo tratamento a ela, que se acha um doce de menina. Fazer o que? Não se pode exigir bons modos de ninguém, muito menos de quem não teve muito contato com uma maneira mais gentil de viver.

Em matéria de respeito ao próximo, ser educado é o básico. O problema é que tem gente que sequer sabe o que é ser educada, confunde conceitos em sua salada emocional interior e, perdida, acaba cultivando sentimentalismo ao invés de amor. O mundo do sentimentalismo é o mundo da enganação. O mundo do amor é o da verdade (cada um com a sua, que seja). O sentimentalismo é a interpretação vulgar do amor.

É muito difícil transmitir essa ideia porque seria necessário explicar o que é o amor para poder diferenciá-lo do corriqueiro sentimentalismo. Mas o amor não se explica, só se sente. Mesmo assim, talvez seja possível demonstrar a distinção com o exemplo da má educação, ou melhor, do que é interpretado como tal sem sê-lo. Foi uma zapeada na televisão que me deu o estalo:  "mentes simples confundem sinceridade com grosseria", disse a personagem do seriado americano aleatório. É isto: a frequente confusão entre sinceridade e grosseria nada mais é do que uma distorção sentimentalista.

Quando uma pessoa é transparente, é digna de confiança. Sendo sincera, suas opiniões são sempre levadas a sério. Para mim, isso é agir de boa-fé, com lealdade e respeito nas relações interpessoais. É manifestação do sentimento amor. Há inúmeras maneiras de ser sincero, a primeira delas é sendo consigo mesmo. Em contrapartida, a primeira reação de quem não é sincero é reprovar a sinceridade alheia que lhe desagrade. A segunda imediata é julgá-la como grosseria.

Tem aquela frase: "quem é de verdade sabe quem é de verdade". Ora, se alguém se expressa com verdade, de coração, ainda que doa, isso não é mal visto por quem é de verdade também. Mas se o mundo fosse feito só por gente "de verdade", a comunicação seria bem mais simples e dinâmica, sem os desgastantes rodeios que somos obrigados a fazer por causa do sentimentalismo.

O filho pequeno faz algo errado. Os pais acham graça e não educam: sentimentalismo.
Uma atitude sincera, embora dolorosa: amor.

Dá pra divagar muito mais no assunto, mas só queria dizer que seria interessante se todo mundo procurasse mais realizar importantes distinções conceituais, como amor e sentimentalismo, sinceridade e grosseria. E trabalhar bem esses conceitos. Por fim, encerro esta reflexão citando (quem diria!) Luiz Felipe Pondé (pois é, acontece): "formar alguém é dar a esta pessoa as ferramentas necessárias para ela compreender melhor o mundo em que vive e poder, no mínimo, sofrer nomeando as razões de seu sofrimento. Segundo a bíblia hebraica, nomear as coisas do mundo é um mandamento divino que faz de nós humanos."

A experiência de Asch

A experiência de Asch é uma das mais populares e mais antigas da psicologia. Seu objetivo foi estudar como o conformismo define o comportamento de um indivíduo, e como a pressão social influencia na individualidade de cada um.

Na experiência uma cartolina com 3 linhas era apresentada aos voluntários, linha A, B, C. Cada linha com um tamanho diferente. Separada das 3 linhas existia uma quarta linha, a linha X, de igual tamanho a uma das três linhas (A, B ou C).
 
O teste consistia basicamente em responder em voz alta se a linha X era do mesmo tamanho da linha A, da linha B ou da linha C.

Porém, todos os voluntários eram comparsas do pesquisador e receberam orientações para errar de propósito, exceto por um voluntário, que não fazia parte do esquema.

Esse voluntário era o último da fila, ou seja, depois que todos respondiam errado ele precisava decidir se respondia o que considerava certo ou se concordava com o grupo.

O resultado foi que apenas 30% das pessoas não cederam á pressão implícita pelo grupo, ou seja, apenas um terço respondeu de acordo com sua convicção pessoal.

Ficou claro que iremos nos conformar ao grupo, somos criaturas muito sociais e desenvolvemos a noção de que precisamos concordar com o que os outros pensam para sermos aceitos e queridos, mesmo que isso signifique abrir mão de opiniões, convicções e individualidades.

Mas a experiência não parou por aí, dentre diversas variações de cenário uma delas consistia em colocar outro voluntário na sala que também não fazia parte do esquema. O resultado foi que, um aliado aumenta o poder de resistência, ou seja, quando os voluntários tinham o apoio de outro indivíduo na sua discordância as chances de ele mudar de opinião em favor da maioria caíam em 75%.

A provocação parece óbvia. Quem é você? O voluntário inocente que concorda com a maioria ou aquele que expõe o que acha correto?

Fonte: Advogados Ativistas; http://www.naopossoevitar.com.br/2009/06/experimentos-em-psicologia-a-unanimidade-burra-de-solomon-asch.html; http://es.wikipedia.org/wiki/Experimento_de_Asch



 

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

É de estratégia que precisamos

 
Em matéria de política, não basta desenvolver o pensamento lendo milhares de livros e debatendo fatos e ideias. É fundamental, também, admitir que política é uma espécie de jogo de xadrez muito peculiar em que é preciso ter frieza e estratégia para a submissão a certos meios mirando um fim, como nos ensinava há 500 anos o grande Maquiavel, verdadeiro patrono da ciência política.
 
É muita ingenuidade pretender ser puritano na política. Sem ceder a interesses alheios — que, inclusive, fazem parte da democracia — como governar? No máximo, daria para governar autoritariamente. Se política se faz no hoje olhando para o amanhã, não adianta: é preciso trabalhar com o que se tem. O PMDB não é o maior partido brasileiro à toa, isso é um reflexo do baixo grau de consciência política da população brasileira. É real. É o que temos para hoje. Acreditar que, de uma hora para outra, essa consciência vai desabrochar e se expandir é mera ilusão. Portanto, por mais que a esquerda represente o melhor ao povo, ela não vai conseguir fazer uma aliança com o povo enquanto não respeitar o seu processo de amadurecimento.  
 
Não que seja uma interpretação soberba, mas, se fosse tão óbvio construir e aderir a ideias progressistas, os partidos e os foros de debate e reflexão de esquerda contariam com a presença maciça do proletariado. Todavia, o que vemos é que a esquerda ainda se sustenta predominantemente graças a uma concentração de intelectuais de ciências humanas, e não simplesmente em face dos problemas do capitalismo: muita gente os enxerga, mas, ainda assim, anseia por um capitalismo melhor! Tristes tempos em que é tão descarada a rudimentariedade do grau de consciência política médio da população.
 
No Brasil, a atual oposição de esquerda, desprezando a oportunidade de contar com um partido de esquerda à frente do executivo federal para engrossar o bloco de esquerda no governo, desperdiçam a chance de fazer política com inteligência tática. Seria muito mais fácil aprofundar aos poucos um projeto de esquerda do que querer concretizar para já um projeto idealizado. Quem ganha com o racha? A direita. Há inúmeros exemplos disso, a ponto de, retoricamente, descaracterizarem o PT como sendo de esquerda. É lógico: enquanto a esquerda se pulveriza, com críticas à crítica da crítica e mimimis sem fim, a direita aproveita. Críticas construtivas são sempre bem-vindas; enfraquecimento, não.
 
Com essas considerações preambulares, e relembrando o que já disse aqui, transcrevo abaixo um maravilhoso artigo de Wladimir Pomar:
 
Notas sobre estratégia e socialismo

Olhando o mundo atual em perspectiva, não é difícil constatar que o capitalismo gerou uma abundância produtiva imensa e, ao mesmo tempo, criou um absurdo civilizacional ao manter bilhões de pessoas sem acesso a tal abundância. E que, quanto mais as grandes corporações monopolizam a economia, mesmo dos países pouco desenvolvidos, mais elas colocam em risco o próprio desenvolvimento burguês. Isto é, emparedam as empresas capitalistas não corporativas, ameaçam a já limitada democracia econômica da burguesia, comprimem a democracia social e se confrontam com a necessidade de liquidar a própria democracia política burguesa.
 
São essas discrepâncias que abrem a possibilidade de apresentar, no Brasil, um programa ou estratégia de transição socialista, que preveja a continuidade de empresas privadas como condição para o desenvolvimento das forças produtivas sociais. Não será mais o espírito anticapitalista, de 1980, nem o espírito temeroso da Carta aos Brasileiros da campanha presidencial do PT, em 2002, com sua tática ambígua de continuidade do neoliberalismo, que alguns pretenderam manter como estratégia.
 
Nos anos 1980, o PT reiterou uma ideia estratégica do pensamento socialista e comunista. Isto é, que a emancipação da classe trabalhadora será obra da própria classe trabalhadora. Por outro lado, confundiu a contradição fundamental da sociedade capitalista, entre capital e trabalho, com a contradição principal da sociedade brasileira naquele momento histórico. A contradição fundamental só se transforma na contradição principal quando o capitalismo concentrar e centralizar, em um pequeno número de burgueses, a esmagadora maioria da massa de meios de produção. Em sociedades como a brasileira, em que o capitalismo ainda não fechara as portas para diversos tipos de desenvolvimento capitalista, a contradição fundamental era a que separava o capital do trabalho, mas a principal contradição histórica era outra.
 
Por um lado, o PT demonstrou radicalidade em reiterar que o capitalismo não muda sem a luta pelo socialismo. Por outro, foi incapaz de distinguir a contradição principal da sociedade brasileira da contradição fundamental entre capital e trabalho, e ficou devendo um programa ou uma estratégia que respondesse à situação real do Brasil, em que ainda havia espaço para uma série considerável de reformas de caráter democrático-burguês. E, também, para a introdução de reformas de caráter socialista, pelas dificuldades da própria burguesia nacional em cumprir o que deveria ser seu papel histórico.
 
Não é por outro motivo que parece haver, no Brasil, concordância em instituir medidas que assegurem o caráter público e universal à educação e à saúde; implantem o imposto sobre grandes fortunas; taxem fortemente os lucros das empresas monopolistas; realizem a reforma agrária, fortaleçam a agricultura familiar e criem uma agroindústria ecológica; submetam o sistema bancário ao interesse coletivo; assegurem o controle público das ações do Estado; descriminalizem o aborto; democratizem os meios de comunicação em todos os níveis; deem fim à concentração fundiária urbana; garantam o domínio do país sobre seus recursos hídricos, florestais, biológicos e minerais; intensifiquem os trabalhos de unificação política e econômica dos países latino-americanos; protejam os biomas ameaçados pelos interesses econômicos; mudem radicalmente o modelo de transporte público; combatam a corrupção pública e privada; impeçam o financiamento privado das eleições; criem mecanismos democráticos de controle externo dos poderes públicos; consolidem a subordinação do aparato militar ao poder civil; e imponham a formação democrática a todas as instituições militares e policiais. Como se nota, todas de natureza democrático-burguesa.
 
Essas medidas podem abrir campo para o desenvolvimento posterior do socialismo, mas não representam mudanças socialistas. Estas só ocorrem quando a maior parte da propriedade privada dos meios de produção, circulação e distribuição se tornou propriedade social. E quando o Estado se tornou um instrumento de poder a serviço principalmente da classe trabalhadoras e das demais camadas populares da população, marcando uma diferença de qualidade entre o capitalismo e o socialismo. Mas essa diferença de qualidade entre capitalismo e socialismo está longe de ser consensual dentro da esquerda.
 
Alguns setores de esquerda temem ou não querem realizar mudanças que reforcem essa diferença qualitativa. Para eles, basta continuar realizando maquiagens de reformas e pinturas das favelas, sem ouvir o que realmente suas populações precisam e querem. Outros setores, por sua vez, confundem o desenvolvimento capitalista com o desenvolvimento socialista e acreditam que já constroem o socialismo no Brasil. Baseiam-se no fato de a burguesia reacionária considerar comunista qualquer medida democrática, e de a burguesia conservadora considerar socialista qualquer programa de cunho social.
 
Em sentido oposto, há setores da esquerda que consideram que um desenvolvimento de caráter socialista terá necessariamente o mesmo caráter de destruição ambiental do capitalismo, e buscam uma terceira via de não crescimento e não desenvolvimento, cujo resultado mais viável deve ser uma estagnação mais profunda do que a do período de predomínio neoliberal. E há setores com a ideia firme de que socialismo é a transformação plena da propriedade dos meios de produção em propriedade social. Não acham necessário considerar o estágio de desenvolvimento desses meios de produção. Portanto, para ser socialista, qualquer revolução social no Brasil teria que realizar uma construção socialista de tipo soviético, apenas expurgada do totalitarismo stalinista.
 
A sugestão de que se possa diferenciar o desenvolvimento capitalista, mesmo que contenha enclaves socialistas, do desenvolvimento socialista, mesmo que contenha enclaves capitalistas, não faz parte das considerações de grande parte da esquerda brasileira. Apesar disso, nas atuais condições econômicas, sociais e políticas do Brasil, há uma real possibilidade de que ambos os caminhos possam ser trilhados. Eles podem mesmo, momentaneamente, parecer de natureza idêntica. Porém, da mesma forma que na bifurcação das espécies, num determinado estágio de sua evolução, um dos caminhos subordinará o outro, que perecerá.
 
O que exige, da esquerda, em especial da que dirige o governo, uma visão clara da possibilidade de transformar o caminho de desenvolvimento capitalista, atualmente predominante, em caminho de desenvolvimento socialista. No estágio de desenvolvimento das forças produtivas no Brasil, o caminho socialista terá que conviver com uma proporção de enclaves capitalistas que contribuam para completar aquele desenvolvimento. Se as forças de esquerda se limitarem a reiterar que um governo dirigido por elas tem como objetivo transformar o Brasil num país de classe média, elas na prática ficarão nos limites da suposta revolução democrática e nos limites do desenvolvimento capitalista. E enfrentarão crescentes manifestações de insatisfação popular. Para transformar as lutas sociais em lutas por um desenvolvimento socialista, além de radicalizar as reivindicações democrático-burguesas consensuais, será necessário incrementar os enclaves socialistas na economia, nas condições sociais e no poder político. E transformá-las em predominantes.