terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Ufa, último dia de 2013!

2013 está sendo chamado de 2000 e crazy; 2014, de 2000 e catarse.
Acho justo.

Amanhã é só mais um dia, mas é ano novo. Psicologicamente faz algum efeito. Esperanças renovadas? Novas expectativas?

Ah, melhor ir de Drummond:

RECEITA DE ANO NOVO 

Para você ganhar belíssimo Ano Novo 

cor do arco-íris, ou da cor da sua paz, 
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido 
(mal vivido talvez ou sem sentido). 

Para você ganhar um ano 
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, 
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser; 
novo até no coração das coisas menos percebidas 
(a começar pelo seu interior). 

Novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota, 
mas com ele se come, se passeia, 
se ama, se compreende, se trabalha, 
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, 
não precisa expedir nem receber mensagens 
(planta recebe mensagens? passa telegramas?) 

Não precisa fazer lista de boas intenções 
para arquivá-las na gaveta. 
Não precisa chorar arrependido 
pelas besteiras consumadas 
nem parvamente acreditar 
que por decreto de esperança 
a partir de janeiro as coisas mudem 
e seja tudo claridade, recompensa, 
justiça entre os homens e as nações, 
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, 
direitos respeitados, começando 
pelo direito augusto de viver. 

Para ganhar um Ano Novo 
que mereça este nome, 
você, meu caro, tem de merecê-lo, 
tem de fazê-lo novo. 
Eu sei que não é fácil, 
mas tente, experimente, consciente. 
É dentro de você que o Ano Novo 
cochila e espera desde sempre.


segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Exatas e humanas: muito mais que culturas distintas

Este ano assisti a uma palestra em que se sustentava o seguinte: de quem tem formação na área das ciências humanas não se pode exigir conhecimento das ciências exatas e vice-versa. O argumento é que os dois campos – humanas e exatas – constituem culturas distintas com igual valor, não cabendo a avaliação de que uma é mais importante que a outra.

Muito errado!

Uma formação humanista básica é absolutamente necessária a qualquer pessoa, ainda que se trilhe o caminho profissional da ciência e tecnologia. Um conhecimento de humanas jamais é inútil; incorpora-se à visão de mundo do sujeito de conhecimento, situando-o melhor no tempo, no espaço, na vida. Torna a pessoa mais consciente da realidade que a cerca, que é imediatamente feita de relações humanas. Você pode não entender nada de logaritmos, mas a ausência de um juízo minimamente esclarecido acerca do funcionamento da política e da economia, por exemplo, te desconecta da experiência essencialmente humana. E por trás de toda prática político-econômica – ou, mais amplamente, de toda relação interpessoal e social – há uma concepção sobre o ser humano. Há valores. Ao fim e ao cabo, as reflexões humanistas abordam questões existenciais (quem sou, onde estou, para onde vou e como vou). 

É muito importante compreender a natureza, saber que somos animais da espécie homo sapiens vivendo no planeta Terra, que é regido por leis da física descritas por equações matemáticas. Mas, sem a noção histórica de como a humanidade se conduz ao longo do tempo, sem reflexões filosóficas, das letras, das artes, das ciências sociais e da psicologia, você pode se achar o crânio das galáxias, mas é, na verdade, de uma insensibilidade vulgar e tão grande que quase te faz ser confundido com uma máquina. Só que não. Então se revela nítido o desequibílbrio provocado pela disfunção daquelas mentes que, sem desenvolver sensibilidade, não se treinaram a olhar para entender a sociedade e o próximo – e, com esse movimento, chegar a desenvolver a capacidade de obtenção de autoconhecimento. 

Isso significa que a dedicação a estudos em ciências humanas, ainda que básicos e gerais, diz respeito à própria emancipação humana, porquanto é impossível ser livre sem acessar às maturações que esse mundo de saber oferece. Ignorá-lo é manter-se em uma triste espécie de menoridade, uma tacanhez que em nada contribui ao encontro do bem-estar, da paz e da felicidade [1].

Não por acaso, a ditadura militar inibia a produção e o desenvolvimento das ciências humanas com muito terror e pesada repressão. O interesse era a máxima expansão econômica em menor tempo possível, sem espaço para a emancipação popular. E, na lógica de que o crescimento econômico depende quase que exclusivamente do desenvolvimento científico e tecnológico, como que colocando antolhos em cidadãos, o (des)governo militar foi bem sucedido ao praticamente negar aos brasileiros um ensino de formação mais substancial – ou, como dizem, "para a vida". Continuamos pagando por isso.

A democracia só pode prosperar se houver um esforço de universalização do mínimo existencial e da promoção de massa crítica. O senso crítico sobre a vida em sociedade, oposto do senso comum, é produto natural – embora não necessário – do pensamento bem introduzido às humanidades. É pensamento que nos leva a ler nas entrelinhas, ter sensibilidade para enxergar caminhos quando, na realidade complexa da vida, não há fórmulas capazes de atestar a separação das respostas certas das erradas, porque simplesmente nem sempre há certo e errado.

Como é baixo o retorno econômico do investimento em ciências humanas, a brutalidade da lógica da ditadura do capital no âmbito das "humanas" se faz superpresente hoje em dia. A ideia do capitalismo cognitivo já denuncia o estrago que o sistema econômico vem produzindo em relação às atividades artísticas e intelectuais. A necessidade de desenvolvimento econômico também é a razão para que o governo brasileiro promova programas como o Ciência Sem Fronteiras em assumida sanha para formar engenheiros sem maiores preocupações com o fortalecimento da área de humanas, o que tem tudo para ser desastroso aos rumos do país, país que é feito de gente. No entanto, parece que insistem em inverter as ideias: não querem que as tecnologias se humanizem, querem transformar pessoas em robozinhos.

Enfim, além de culturas distintas, é preciso reconhecer que as ciências humanas são mais importantes do que as exatas, sim. Não dão dinheiro, mas promovem lucidez, sabedoria e crítica. Enaltecem o ser humano e iluminam suas escolhas. Portanto, é fundamental a todos um currículo básico de ciências humanas, com a apresentação consistente de um repertório de conhecimentos que constituem o núcleo duro dessas ciências, sob risco de a humanidade, refém do "sistema", nunca se transformar em verdadeira senhora de seu destino.

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[1] Não há apenas um caminho para se chegar ao autoconhecimento, mas, sem dúvida, entender o mundo ao redor pode ser um deles. Segundo a filosofia oriental, é possível conhecer-se e atingir um estado de realização pessoal sem olhar para fora, mas exclusivamente para dentro. Daí as tradicionais meditações como técnicas de alcance de lucidez interior. Ocorre que a vida em sociedade requer mais do que os trabalhos autocentrados do isolamento individual. Como inevitavelmente estamos vinculados à sociedade, é preciso olhar para ela, procurar entendê-la e dela participar. Nesse sentido, olhar para fora é, de qualquer maneira, necessário ao bem viver.

domingo, 29 de dezembro de 2013

O Pasquim da democracia

Na época da ditadura militar brasileira, o papel da imprensa alternativa foi crucial para a manutenção e o fortalecimento de algum pensamento político de contraponto à criminosa propagação do discurso dominante – antidemocrático, de direita e conservador. Nesse sentido, o veículo de maior destaque foi O Pasquim, tabloide fundado em 1969.

Mais de quarenta anos depois, as forças antidemocráticas continuam a operar com todo o vigor, embora, talvez, mais dissimuladamente. Aparentemente, não mais se ousa pensar a sério um novo golpe militar, mas o ar de golpismo que suscita a grande mídia é quase sufocante.

Com a eleição do presidente Lula, em 2002, os cinco proprietários que controlam quase toda a mídia do país formam um sólido bloco de oposição bem articulado e incisivo, arregimentando todos os canais de comunicação possíveis: rádios, jornais, revistas, internet e, o mais impactante, a televisão. Essa mídia mainstream passa a emitir mais intensamente seu coro uníssono, até em tom de desespero, como um aparelho ideológico que apela às mais absurdas mentiras ardilosamente transmitidas a um público já conservador e ignorante, que é a classe média brasileira, enquanto o governo se amedronta diante desse poder que estigmatiza e assassina reputações despudoradamente e em questão de minutos.

Por outro lado, na luta da produção de verdades, que reflete um embate entre valores e visões sobre como a História deve caminhar, a mídia alternativa encontra na internet campo fértil de realização. Por isso, se hoje tanto se celebra a existência de O Pasquim nos anos de chumbo, não se pode fechar os olhos para o valor equivalente que a resistente e combativa nova mídia alternativa possui exatamente agora, quando a democracia é uma frágil realidade, constantemente ameaçada e ainda longe de estar totalmente concretizada [1].

Diante de uma enorme distorção do sentido de jornalismo, da confusão entre liberdade de imprensa e liberdade de empresa e das evidentes (más) intenções da grande mídia nativa, uma série de blogueiros e ativistas surgiram no país e estão desempenhando um belíssimo ofício de liberdade de expressão e, acima de tudo, de democracia. O testemunho desse bonito processo histórico de fortalecimento da mídia alternativa no Brasil contemporâneo deve se dar com o maior orgulho e reconhecimento, não obstante o óbvio silêncio dos grandes grupos de comunicação. 

O novo O Pasquim, a mídia alternativa salutar à democracia brasileira, conta com nomes como Miguel do Rosário (O Cafezinho), Fernando Brito (Tijolaço), Luiz Carlos Azenha (Viomundo), Rodrigo Vianna (Escrevinhador), Paulo Henrique Amorim (Conversa Afiada), Luis Nassif, Altamiro Borges e muitos outros. É criado o valioso grupo Mídia Ninja e aparecem organizações como o Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé. 

O movimento da mídia alternativa também cresce nas redes sociais. No Facebook, páginas de esquerda são frequentemente perseguidas e censuradas após lograrem viralizar mensagens que demonstram as farsas montadas pela oposição, com todo o apoio da grande mídia, para proteger os seus e macular a imagem do governo do Partido dos Trabalhadores. 

O ano de 2013, com as jornadas de junho, marca exatamente a importância central do conflito entre os jornalões e a mídia alternativa com a esquizofrenia social que se fez patente: ao mesmo tempo em que as massas continuam incorporando o discurso da velha mídia, esta se revelou alvo de um repúdio generalizado. 

Para o ano que vem – que promete ser difícil, com Copa do Mundo e eleições presidenciais – o desafio é levar às ruas, em grande escala, a pressão pelo Projeto de Lei de Iniciativa Popular da mídia democrática. Olhando para os megaconglomerados de comunicação que manipulam a informação contra esse projeto, sim, nossa campanha parece bem difícil. Mas é certo que estamos trabalhando e vamos avançar!

Então – como o que não nos mata, nos fortalece –, que venha 2014 e viva a democracia!

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[1] Não custa lembrar que, durante os protestos que mobilizaram o país este ano, a embaixadora dos Estados Unidos no Paraguai na ocasião do golpe contra o governo Lugo foi imediatamente transferida para cá. Além do Tio Sam, também os militares se manifestaram dizendo que "estavam atentos"; sem falar na cada vez mais eloquente postura do Judiciário, ao que tudo indica movido pelos mesmos poderes obscuros que animam a imprensa, especialmente as organizações Globo.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Laymert Garcia dos Santos: uma brilhante entrevista-síntese sobre nossos dias


Por Glauco Faria e Igor Carvalho - Revista Fórum.
“O caso Snowden é o último elo de uma cadeia que vem vindo de várias outras que já entenderam o enorme potencial das redes, de politizar as questões simplesmente pela circulação dos fluxos de informação. Por quê? Porque se o Estado e o mercado podem saber tudo sobre a população, explorando isso do ponto de vista do controle, por outro lado os movimentos também podem.” A ponderação é de Laymert Garcia dos Santos, doutor em Ciências da Informação pela Universidade de Paris VII e professor titular do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, e remete à importância de se debater o funcionamento das redes e sua relação com as ruas, algo que veio à tona com as manifestações de junho no Brasil.
Para Laymert, o advento do Wikileaks fez com que se prestasse mais atenção sobre quais informações as elites gostariam que não fossem reveladas. “O conflito de classes, em escala global, começa a acontecer nas redes, porque existe uma política de controle e hierarquização da informação nas redes, e, do outro lado, há gente trabalhando para a desobstrução dos canais”, afirma. “E isso é democracia, porque se você começa a fazer todo o fluxo de informação passar, as pessoas ficam sabendo o que os de cima não querem que elas saibam.” Confira abaixo a entrevista.
Fórum – Como o senhor enxergou as manifestações de junho, principalmente o envolvimento delas com as novas tecnologias?
Laymert Garcia dos Santos – As manifestações de junho foram uma grande surpresa para mim porque, pouco menos de um mês antes das manifestações, fiz uma palestra na PUC e introduzi dizendo que tenho 65 anos, mas gostaria de ter 30, porque achava que essa nova geração, no Brasil sobretudo, tinha uma oportunidade como nunca tivemos na história. O país entrou no mapa, aconteceu com a era Lula uma transformação social, com a inclusão de 40 milhões de pessoas, mas também por conta de uma política externa e cultural muito diferente do que tinha havido anteriomente. Isso abriu uma oportunidade nova de o país buscar o rumo que tinha tentado em 1964, mas, enfim, é a primeira vez que estávamos na cena mundialmente, e isso muda tudo.
Queria ter 30 anos hoje porque pela primeira vez não precisamos dizer “sim, senhor”, e isso dá para as novas gerações, e para o futuro, uma abertura inédita na história brasileira. Um pouco mais de um mês depois vieram as jornadas de junho, aí pensei: “Ou estou completamente fora de sintonia sobre o que está acontecendo, ou aquilo que estava dizendo continua valendo de alguma maneira, mas preciso entender o que é esse descontentamento e isso que está acontecendo nas ruas”.
Fiquei muito dividido quando as jornadas começaram. Embora entendesse completamente a posição do MPL [Movimento Passe Livre] e achasse que essas reivindicações todas que apareceram nas primeiras manifestações eram justas, por mais direitos, elas tinham uma coloração que me incomodava. E me incomodava porque não conseguia situar politicamente ali. Mas por que isso? Porque tinha a memória dos anos 1960. Como havia uma juventude tão descontente se existia, na história recente, uma transformação tão grande? E dava para perceber, na universidade mesmo, que a politização era muito baixa, via isso entre os jovens.
À medida que o tempo foi passando, como todo mundo, fui tentando entender o que estava acontecendo, mas sobretudo buscando compreender o papel das redes sociais. Comecei a achar que havia uma certa esquizofrenia no movimento, e essa esquizofrenia aparecia da seguinte maneira: eram reivindicações que, em geral, pertencem ao campo da esquerda, por mais democracia e direitos, portanto, no campo da esquerda, mas que quando chegava na hora das manifestações, as reivindicações eram verbalizadas com um tom que, no meu entender, era pautado pela mídia, em especial a questão da corrupção do modo como a mídia tinha trabalhado em demasia nos últimos anos.
Chamei de esquizofrênico por isso. De um lado, você tem as reivindicações de esquerda, por direitos, mas ao mesmo tempo com uma linguagem mista e que permitiu, inclusive, uma tentativa de recuperação das jornadas pela direita. Para mim, essa esquizofrenia se duplicava na relação entre novas tecnologias e velhas mídias, porque mostrava a permeabilidade dos jovens à mídia tradicional e à oposição programática que essa mídia tradicional tem com relação aos governos de esquerda. Ela [mídia tradicional] é francamente reacionária e francamente conservadora, considero que se trata praticamente um partido organizado. Por outro lado, há uma utilização das novas tecnologias de uma maneira muito contemporânea e de certo modo bem generosa, de esquerda, mas também misturada com essa coisa de redes sociais. Apesar de saber utilizar muito bem essa mídia para se mobilizar, a juventude não a usava para se informar.
Penso que essa perspectiva não esteja invalidada mesmo com o passar dos meses de julho e agosto, ainda que tenha surgido um fantasma de uma possível recuperação das ruas pela direita. Contudo, esse fantasma passou, e de certa maneira não colou, apesar de em algum momento ter havido uma dubiedade bastante grande que fez com que muita gente da esquerda se espantasse, sobretudo quem viveu 1964, aquela coisa de “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” etc. Um outro aspecto importante diz respeito ao envelhecimento do discurso politico tradicional e da própria mídia, apesar do efeito que causou sobre os manifestantes, em lidar com o assunto. O caráter jurássico da televisão e dos jornais para lidar e cobrir os assuntos ficou evidente. Isso foi um dos efeitos positivos dessa história, por exemplo, se a Globo tem que pedir desculpas, não importa se é hipócrita ou não, é porque alguma coisa aconteceu e arranhou a imagem dela.
Se a Globo começa a pensar que ela precisa ter o Fernando Meirelles para diretor-geral, é porque eles sentiram, com as jornadas de junho, que de repente a linguagem, o modo de abordar ficaram visivelmente superados, e para mim o ponto onde isso apareceu com mais vigor foi na incapacidade de sequer entender o que aqueles meninos do Mídia Ninja queriam dizer. Tentaram criminalizá-los, dizer que era uma mídia chapa-branca, que recebia verbas públicas… O que aconteceu de fato ali, que foi bem importante, é que as repostas deixavam claro que tinha uma outra lógica funcionando, inclusive de trabalho em rede, de cooperação e de colaboração, que escapava do esquema empresarial.
Um dos fatores importantes das jornadas é que houve um update da juventude em relação a uma série de questões, entre elas a redescoberta da rua, que depois vai aparecer nessa espécie de fragmentação de manifestações e reivindicações. Fragmentação que não acho ruim, pois é interessante que as pessoas saibam que elas podem – já podiam, mas não sabiam que podiam – se mobilizar.
A questão da rua mudou, mas houve uma politização que começa a acontecer em relação aos próprios meios digitais. Se a passagem do Fora do Eixo para a Mídia Ninja acontece nesse momento não é por acaso; o que antes era uma prática cultural passa a ser uma prática cultural e política ao mesmo tempo, porque abrange uma compreensão sobre fazer política de um outro modo.
Fórum – Essa questão não está ligada justamente a esse caráter esquizofrênico? Às vezes as pessoas foram lá pautadas pela mídia tradicional mesmo sem saber, e, quando aparece um microfone da Globo, rejeitam essa mesma mídia tradicional. Hoje, observamos que as coberturas ao vivo das manifestações são feitas de cima, de prédios ou helicópteros ou de jornalistas sem identificação, enquanto outras mídias estão no chão, em meio à multidão…
Laymert – Por isso disse que era esquizofrênico. Por um lado, aquilo que era reivindicado era uma pauta de esquerda, mas a linguagem ainda estava ligada a uma cabeça permeável a essa mídia, e uma das coisas boas que aconteceu é que houve uma politização aí, com relação à própria mídia, e uma distância desse discurso que era um modo de expressão dominante, sobretudo da classe média. Tem várias nuances, quando falo das manifestações, me refiro às grandes que aconteceram nas cidades maiores, que pegavam uma faixa grande de classe média. Porque, desde o começo, se você observava o que se dizia na periferia é “aqui a bala não é de borracha”. Essa foi uma das primeiras coisas que apareceu em relação à repressão policial no centro, a crítica sobre o papel da polícia, o quanto a PM é uma herança da ditadura e a necessidade de se discutir essa questão e modificar a forma como é pensada a segurança…
Fórum – Existe uma ruptura também no discurso da imprensa, que chegou a defender em editoriais a repressão e, quando seus repórteres foram atingidos pela polícia, passaram a adotar outra postura.

Laymert – Foi aí que se tornou impossível a repressão das manifestações. Enquanto você está fazendo isso na periferia, tudo bem, não pode fazer onde estão os “nossos filhos”… É como já se disse em relação ao nazismo, enquanto solução de extermínio, genocídio, era feita nas colônias, tudo bem, mas fazer isso no coração da Europa não dá. A lógica é a mesma.

Fórum – No debate que o senhor participou na USP o senhor falou sobre “vandalismo seletivo”…
Laymert – Houve num certo momento uma tentativa de se fazer uma distinção os manifestantes, havia os “palatáveis”, como aquele que se enrola na bandeira e a Vejavai fotografar como se fossem os verdadeiros manifestantes porque estão lutando contra a corrupção, tentando fazer colar no governo do PT o carimbo da corrupção, uma questão classe média. Do ponto de vista conservador havia essa distinção, de um lado, há o bom manifestante; do outro, o mau, que é o vândalo, indistinto, é todo mundo que quebra alguma coisa. Conversando com gente que conhece a periferia, os manifestantes que vinham de lá, percebi que havia uma diferença entre os chamados “violentos”, e que não era possível colocar todos no mesmo bloco. Havia agentes provocadores que entravam nas manifestações e que procuravam atingir as instituições, mas com quebradeiras indiscriminadas, e aqueles que chamei de ”destruidores seletivos”, que queriam atingir os símbolos do capital, não estavam atacando qualquer coisa, mas visavam agências de automóvel, bancos e alguns símbolos do capital global, retomando um pouco o que acontece desde Seattle [em 1999].
Fórum – Nas primeiras edições do Fórum Social Mundial, não era incomum ver a polícia protegendo o McDonald’s, ou seja, protegendo o patrimônio.
Laymert – A questão do patrimônio… Lembro que um dos grandes “escândalos” em uma das primeiras manifestações foi o ataque a uma agência de automóveis, no mesmo dia em que houve uma intervenção militar na Maré, em que morreram nove pessoas. E o escarcéu foi em torno da agência de automóveis. Se tem, por um lado, uma espécie de violência seletiva, por outro tem de ser sempre lembrado que a questão do patrimônio é mais sacrossanta na visão da mídia tradicional e dos conservadores, e a vida das pessoas, não. Na Maré, ninguém levantou o dedo para apontar que havia ocorrido um verdadeiro massacre.
São essas nuances que é preciso observar para não condenar a violência em bloco, porque existe um certo tipo de violência compreensível e talvez até defensável. Entendo perfeitamente porque ouvi relatos de pessoas que conheciam jovens de periferia que participaram de algumas das ações de violência e que estavam dando o troco por aquilo que recebem todo dia na periferia.
Quando existe um momento em que se pode revidar no centro da cidade, entendo, porque sabemos como a periferia é tratada por governos como o do Alckmin, em São Paulo, ou no Rio de Janeiro. A gente sabe como é.
A questão da segurança precisa ser rediscutida, e por isso gostei da capa da Fórum [125] que dizia: “Polícia não pode ser militar”, fazendo uma dissociação que é fundamental. Muito das outras impunidades são herança de uma impunidade na qual existe uma categoria de cidadãos que está acima da lei, e não é só o agente do grande capital, mas está representada no exercício da violência aberta contra a população. Enquanto não houver uma discussão de fundo sobre a violência que é exercida contra os índios, desde 1500, um genocídio… Tem de colocar esse pacote em cima da mesa, assim como o pacote da Lei de Anistia, é necessário responsabilizar aqueles que na ditadura torturaram, essas pessoas têm de ser punidas. É preciso colocar a questão da segurança mostrando que a polícia não pode tudo, porque também tem de obedecer à lei. Enquanto não acabar essa impunidade, acho difícil que as outras impunidades acabem, porque já se estabelece que há gente que está acima da lei e gente que tem de obedecê-la. Não é possível dizer que se está em uma democracia política, e não estou nem falando social e econômica.
Fórum – Ou seja, essa seria talvez uma das principais questões a ser tratada, também decorrente das manifestações, começarmos a remover esse entulho autoritário?

Laymert – Sim, temos de começar a remover esse entulho autoritário, para além das reivindicações específicas. Essa é uma questão de fundo, e temos de levar até o fim o tema da segurança, o genocídio contra os índios… E a outra questão é a das mídias, da mídia velha que ficou patente, e isso é patente, e a relação da juventude com as novas tecnologias. Isso precisa ser trabalhado.

Fórum – Os manifestantes não aceitam, por exemplo, a Rede Globo nas manifestações, mas os marcos regulatórios das comunicações e da internet ainda não se tornaram bandeiras ativas nas ruas.
Laymert – Quando comecei a ver algumas manifestações de “Fora Globo” e depois, ainda, manifestações na frente da emissora, paralelamente corria o caso do [Edward] Snowden. No início as questões estavam totalmente dissociadas e depois se juntaram, comecei a prestar mais atenção nele do que no outro pedaço, porque percebi que aquilo era histórico. Quando começaram as manifestações na porta da Globo, comentei aqui em casa: Será que não era mais importante haver manifestações pelo marco regulatório? Será que é mais importante atacar a mídia velha ou já assumir a discussão da regulação das novas mídias, porque é com elas que está o futuro, não está com a imprensa escrita e nem mesmo com a televisão. Será que não é na questão das redes que estaria a questão principal e a briga do marco regulatório? Até porque existem setores do governo que são bastante permeáveis aos interesses das teles, da televisão tradicional, que estão, inclusive, emperrando no Congresso a votação dessa lei.
Fórum – Existe em vários setores do governo…

Laymert – Claro. Mas parecia que ainda não era pauta, e de certo modo ainda não se tornou uma pauta política dos jovens, e aquele momento era muito importante para se tornar uma pauta dos jovens, porque juntou tudo quando as revelações do Snowden chegaram aqui, e principalmente quando a presidenta da República tem sua comunicação espionada. Não dá mais para invocar a explicação que eles deram, de que o motivo da bisbilhotagem era só por razões de terrorismo. Torna-se absolutamente necessário um marco que regule a internet, que seja pela proteção da privacidade e que possa se estabelecer uma política digital, necessária até por questões de soberania.

Por outro lado, é preciso que haja uma pressão da sociedade civil e sobretudo dos jovens no sentindo de entender que a questão da defesa da privacidade é política, e é extremamente importante não para você colocar sua fofoca em dia pelo Facebook, o que precisa se defender é uma outra lógica de operação em rede. Essa lógica, de certa maneira, já vem sendo trabalhada no Brasil desde o começo do governo Lula, o Ministério da Cultura do Gil tinha uma estratégia em relação a isso, unir diversidade cultural e cultura digital. Por que isso? Justamente por ser potência com potência. Potência das novas tecnologias com uma potência de uma cultura popular forte que existe no Brasil, mas que não encontra canal, porque os canais estão estrangulados e dominados por uma produção cultural que não é feita para a população. Ou ela é feita para a elite ou é feita com o objetivo de massa e de indústria cultural, de exploração comercial. Mas a riqueza da cultura popular não é engatada positivamente de tal maneira que possa se desenvolver e criar condições não só para a ampliação, inclusão cultural, mas para que esses jovens possam encontrar uma inserção social através da produção de cultura. O Gil viu isso muito claramente e fez disso uma estratégia, reconhecida internacionalmente, porque nós éramos um dos países que estavam na ponta na relação entre cultura e tecnologia, e na ponta do entendimento da possibilidade que o digital traz, inclusive na política, trabalhando na lógica cooperativa, daquilo que escapa da propriedade intelectual, do software livre, do Commons. Não é por acaso que o sujeito que inventou o “www” [Tim Berners-Lee] disse que o marco regulatório brasileiro, se aprovado, será o mais avançado do mundo na questão da proteção das liberdades individuais. Por que ele é o mais avançado? Justamente porque já tem um caldo cultural, conversei com alguns desses grandes advogados americanos que trabalham na questão do Creative Commons, do software livre, e eles achavam que tem uma política de ponta no Brasil, uma elaboração feita… Depois que entrou o governo Dilma, isso deu uma arrefecida, veio a Ana de Hollanda [ex-ministra da Cultura], que foi um retrocesso e ainda estamos em processo de retomada. Dá para entender o que eu digo? Agora, com o fato de os americanos terem feito o que fizeram [espionagem na NSA], temos uma oportunidade de ter uma política de Estado que é crucial, porque é o futuro. A questão do digital é o futuro, não tem volta. Se não estivermos preparados para isso, não estamos preparados para essa autonomia que estamos começando a desenhar, que começou há dez anos, em 2003, e é nessa autonomia relativa que temos de navegar. E pude perceber porque acompanhei de perto, nas ações do Ministério da Cultura, que existia uma sintonia forte entre a nova diplomacia brasileira e o que era a visão estratégica de cultura do Gil. Um entendimento forte em relação a qual era o papel do Brasil na América Latina, seu papel no mundo, que diferença poderíamos fazer, já existe um pensamento no Brasil, uma prática e um conhecimento acumulado que permite que isso tenha vazão, e essa luta da cultura e da tecnologia precisa ser reconhecida como pauta mesmo.
Fórum – Dentro dessa sua ideia de entender o digital como o futuro e remetendo um pouco às manifestações. Nós tínhamos esse setor do Gil, com o Juca Ferreira, no governo Lula, que tinha esse entendimento muito claro do papel da tecnologia aliada à cultura. Mas as manifestações também não mostraram para certos setores que estão analógicos demais? Ou seja, nossos partidos de esquerda, muitos sindicatos e movimentos sociais não tratam desse tema ainda.
Laymert – Concordo plenamente com a análise que você faz, tem uma questão que para mim é complicada, a incapacidade que governos do PT tiveram em lidar com a questão da mídia. De certo modo, ela permaneceu intocada, até quando houve momentos em que alguma coisa de mais forte poderia ter sido feito, quando a Globo fez uma aposta errada no mercado financeiro e entrou em uma situação de crise. Ali havia um flanco aberto, mas o governo Lula foi lá e bancou, sem colocar condições.
Isso continua até hoje. Em parte, isso se deve ao fato de a esquerda brasileira nunca ter feito a crítica de fundo da mídia. E nem da tecnologia. A posição de esquerda de partidos, sindicatos etc. é de que os meios são neutros e tudo depende de quem se apropria dessa técnica e, portanto, quando chegar o momento de a esquerda estar no poder, se faz uma inversão de signos. Isso é o máximo que a esquerda pensou sobre essa questão, e há muitos anos venho pensando e batalhando por um outro entendimento, porque não é possível você considerar a tecnologia como algo meramente instrumental, quando ela modifica completamente todos os tipos de relação. A tecnologia, sobretudo depois da virada cibernética, mudou a vida, o trabalho e a linguagem. Ou seja, mudaram as relações. Nessas condições, se você não fizer uma crítica de fundo, vai acabar fazendo aquilo que critica em seu adversário, vai fazer isso achando que colocou um conteúdo de esquerda, mas as práticas serão as mesmas. Assim, vai ser tão manipulatório e antidemocrático quanto antes e, de certo modo, desconhecendo o próprio potencial que a tecnologia traz.
Por exemplo, voltando um pouco, há uma questão que me espantou, que mostra como se pode ao mesmo tempo estar no jogo não sabendo que se está no jogo. Nas grandes manifestações, em junho, todo mundo se volta para o Estado para ver qual será a reação deste Estado. A Dilma vai para a televisão e faz uma proposta de uma Assembleia Constituinte específica para a reforma política. Ela deu uma resposta política que era absolutamente crucial, porque respondeu a uma demanda de poder dos movimentos nas ruas, com algo que ampliava a participação em poder, já não seria o Congresso o ator principal dessa operação. E foi interessantíssimo, bastante elucidativo, porque, ao fazer essa proposta, os conservadores e a classe política inteira se mobilizaram para boicotá-la, primeiro para transformá-la em um plebiscito para que nada acontecesse. Esses setores estão no seu papel, quem não está em seu papel são os manifestantes, que pediam mais poder e, quando você tem a autoridade máxima do Estado acenando e dizendo: “Vamos nessa?”, o outro lado não responde. Não houve manifestações para isso e nem um entendimento sobre o que significava esse gesto. Ouvi gente dizendo: “Ah, mas era um cálculo político”. Não importa. As ruas emitiram um sinal, e a Dilma emitiu um outro sinal em resposta num sentido de ampliação da democracia como nunca havia acontecido. Os setores da direita imediatamente souberam ler o que estava em jogo, e os manifestantes não souberam. Por quê? Despolitização? Não souberam avaliar? O que aconteceu? Isso me fez pensar que as reivindicações do movimento são restritas, de certa maneira têm um certo fôlego, que não é muito grande, e sendo atendidas algumas reivindicações, você consegue esvaziar. De qualquer maneira, se perdeu uma oportunidade naquele momento, havia uma abertura para uma potência, que não se concretizou.
Para mim, essa perda de oportunidade diz muito sobre a leitura de campos de forças e do entendimento sobre o que é este jogo de forças. Em relação às novas tecnologias, para o PT, para os sindicatos e movimentos sociais, ainda não caiu a ficha da sua importância e que isso pode ser trabalhado de uma outra lógica, colocando em xeque políticas de controle global. O caso Snowden é o último elo de uma cadeia que vem vindo de várias outras que já entenderam o enorme potencial das redes, de politizar as questões simplesmente pela circulação dos fluxos de informação. Por quê? Porque se o Estado e o mercado podem saber tudo sobre a população, explorando isso do ponto de vista do controle, por outro lado os movimentos também podem, e isso o Wikileaks começou a fazer, a prestar atenção sobre quais informações os super-ricos querem suprimir. O conflito de classes, em escala global, começa a acontecer nas redes, porque existe uma política de controle e hierarquização da informação nas redes, e, do outro lado, há gente trabalhando para a desobstrução dos canais. E isso é democracia, porque se você começa a fazer todo o fluxo de informação passar, as pessoas ficam sabendo o que os de cima não querem que elas saibam. É o que está acontecendo com o Snowden de novo. Isso a própria tecnologia permite como a lógica de funcionamento em rede auxilia na distribuição da informação. O que as pessoas não entendem de jeito nenhum é que a informação é a diferença que faz a diferença, e também é o valor do capitalismo contemporâneo.
Quando a informação se tornou valor, e isso começou na década de 1970, a questão se colocou: “Como ganhar dinheiro com a informação?”. Porque a informação não tinha preço. Foi reelaborada e inventada uma coisa que se chama direito de propriedade intelectual, que não é só uma extensão do direito autoral e do direito de invenção da propriedade industrial, é muito mais do que isso. É o que alguns especialistas chamam de “a última enclosure”, o último cercado que começou na Inglaterra com o começo do capitalismo, quando se cercou a terra. Agora vamos criar um que vai cercar essa unidade mínima que é a diferença que faz a diferença, para garantir a exploração desse valor como unidade mínima, e, ao mesmo tempo, com um alcance global. A lógica das redes, de seu funcionamento e aperfeiçoamento, é colaborativa, e, sendo colaborativa, ela escapa, é da sua própria lógica que as informações circulem. Se não circulam é porque começam a colocar gargalos para cercar e fazer a captura dentro do sistema que permite que isso vire uma propriedade. A esquerda ainda não entendeu o alcance que isso tem como luta política. Se pegarmos, por exemplo, esse sistema anglo-americano de espionagem, porque são americanos, mas os ingleses estão acoplados, como eles chamam as primeiras operações por meio desses sistemas? Vão dar os nomes das primeiras batalhas imperialistas, tanto dos EUA quanto da Inglaterra. Por quê? Porque começou, em outro plano, um outro tipo de imperialismo, e se você não estiver preparado para lutar neste outro plano, como vai perceber o que está em jogo? Existe uma guerra, hoje, no mundo digital, mas é real também porque a dimensão virtual da realidade é tão real quanto a física. Mas a ficha ainda não caiu que esse conflito está lá, e é claro que isso precisa ser entendido, se tornar uma questão política de ponta. Ainda não vi as pessoas se mobilizando para defender o marco regulatório da internet; inclusive, se a gente fizer isso, ou vier a fazer num futuro próximo, vamos ser modelo para outros países que estão com o mesmo problema. Mas precisamos fazer.
Não se faz democracia sem informação, e a maneira de fazer democracia atualmente é expondo, para os ricos, aquilo que eles fazem para o resto da população. Se eles podem fazer tudo e levantar tudo sobre a população, e estão o tempo inteiro se protegendo e protegendo essa informação, sobretudo para destruir aquilo que não deve ser conhecido, os caras que aparecem, de certa maneira, e levantam esse movimento, mostram como essa lógica de captura funciona, estão trabalhando para uma desobstrução de canais, algo absolutamente fundamental. Só pela desobstrução de canais e por uma luta entendendo o que é a propriedade intelectual e o que é fechar a informação para uma apropriação é que você vai poder lutar no futuro, porque não se pode mais voltar para trás. Quando se observa a geração de agora, de 20 anos, eles não conseguem nem lembrar, aliás, nem conseguem saber o que é o mundo sem internet. Nós também não. Algum de nós consegue viver sem internet? Claro que não.
Fórum – Esse campo, esse fluxo das redes, já se constituiu num campo de batalha para as grandes potências, para o grande capital também, mas muita gente, inclusive da esquerda, ainda não captou isso. A gente pode dizer hoje que as redes e as novas tecnologias são essa nova expressão da luta de classes, só que ninguém enxergou ainda?
Laymert – Não é que há um determinismo tecnológico, não é essa a questão, se essas máquinas existem é porque as forças produtivas se desenvolveram a ponto de criar essas máquinas. Mas elas colocam a luta política em outro patamar, e esse outro patamar não pode mais deixar de ser levado em conta porque a luta vai se passar lá. Não só lá, mas não é possível entender as ruas hoje, no Brasil e em outros países, sem entender o binômio redes e ruas, com suas especificidades. O modo como o movimento se dá nas redes não é exatamente o mesmo que se dá nas ruas, a relação rede-rua é que tem de ser pensada junto, na sua articulação, e isso é política. Chamo isso de tecnopolítica porque não é mais possível pensar a política sem a tecnologia junto. Estamos vendo agora na política internacional, em que se discute aquilo que se passa nas redes.
Fórum – Mas ela ainda é excludente…

Laymert – Claro que é excludente, e se você quiser expandir a democracia política no país, tem de ter banda larga pra todo mundo e com preço acessível, mas tem de ser uma política de Estado. Já devia haver uma diretriz nesse sentido, porque o acesso às comunicações no Brasil é muito caro, não só a banda larga como a telefonia celular é extremamente cara para uma qualidade ruim, a relação qualidade-preço é absurda, e isso revela que existe muito caminho para ser trilhado aqui. É preciso garantir o acesso para a população, mas também trabalhar a educação digital dessas pessoas, e acho que foi isso que o Gil sacou, que podia fazer uma relação entre riqueza cultural e um povo sem acesso. O mais importante é abrir canais novos, e o potencial que a pessoa tem na periferia encontra uma maneira de realizar aquilo, não se torna só um consumidor de uma cultura que vem de cima para baixo. É uma diferença enorme. E até a dependência em relação à mídia velha vai sendo cada vez menor.

Fórum – Em relação à educação, existe também a questão do trabalho imaterial, que começa a ganhar importância; não sei se é possível isolar, mas como isso modifica a luta dos trabalhadores, dos sindicatos e como entra a questão educacional nesse sentido?

Laymert – A virada cibernética começou nos anos 1950 nos laboratórios, e nos anos 1970, as máquinas inteligentes começaram a entrar, com os computadores pessoais, em todos os setores, na vida social, na produção, em tudo. Houve uma alteração que é crescente, e cada vez mais profunda, da vida e do trabalho das pessoas, afetou o modo como se trabalhava, instaurando o que muitos chamam, inclusive, de crise da sociedade de trabalho. Porque as máquinas começaram a substituir não só a força física, como era no século XIX, com as máquinas a vapor substituindo quem fazia a força motora, mas passou a fazer todo tipo de trabalho que não é o de invenção, que a máquina não é capaz de criar ela própria. Fora esse trabalho, a substituição do trabalhador pela máquina é cada vez maior, tanto que vemos, desde que isso começou, um paradoxo enorme no qual todos os governos do mundo dizem que precisam aumentar o nível de emprego, e fomentam políticas que substituem os humanos pelas máquinas. Você diz o tempo todo que vai lutar pelo aumento do emprego e, ao mesmo tempo, implanta uma política que elimina o trabalhador e põe uma máquina no lugar dele.

Claro que não é culpa das máquinas, e sim das relações sociais, pois se elas ocupam o lugar dos humanos, eles poderiam ser liberados e preparados para fazer o trabalho que elas não podem fazer. Mas esse desenvolvimento é usado contra o trabalhador, fazendo com que antes ele fizesse uma greve por melhores condições de trabalho e depois da era cibernética, que ele pedisse pelo amor de Deus pra trabalhar. Essa mudança é o que os especialistas chamam de crise da sociedade do trabalho. Hoje a precarização é tal que você luta para manter o seu trabalho. Ao mesmo tempo, essa nova situação cria condições para que outro tipo de trabalho possa acontecer, de caráter colaborativo, escapando dessa lógica.
É necessário que os sindicatos, os trabalhadores discutam isso, quais são as positividades que podem ajudar para não transformar isso em um ludismo, uma briga contra a máquina. Por outro lado, tem de haver uma educação que já integre essa frente de transformação digital porque o mundo se transformou em algo no qual a dimensão digital é incontornável, e é preciso que a população seja educada pra isso. Qual o problema principal depois que você consegue o acesso? É que é necessário ter uma educação para que, dentro daquele fluxo gigantesco de informações, você possa ter parâmetros para discriminar a informação que vai ser boa para você. Não é só o acesso físico, se não tiver critério para se politizar dentro disso, por exemplo, você vai usar a máquina como uma televisão. Usa 1% dela, e no que ela tem de pior.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

A verdade sufocada na democracia

Por Lúcio Flávio Pinto (Adaptado do do Jornal Pessoal nº 550, 1ª quinzena/ dezembro de 2013).
A censura é uma das primeiras armas das quais as ditaduras lançam mão para sufocar a liberdade de expressão, a verdade e a própria história. Ela parece tão traumática que, uma vez superada, todos a esquecem, inclusive – e surpreendentemente – os que dela foram vítimas diretas.
A falta de depoimentos e estudos sobre a ação da censura política no Brasil contribui para apagar o passado, extirpando as lições que proporcionaria se fosse submetido a uma reflexão crítica. Deixa a sociedade indefesa diante de um mal que costuma suceder a castração da informação pelo Estado: a autocensura dos próprios cidadãos.
Vivemos num período de desbragada autocensura, quebrada apenas pela verborragia drenada pela internet, que acaba comprometendo a capacidade de entendimento da realidade. Essa é uma anomalia. Talvez nunca tenhamos tido tanta democracia como agora em toda a história republicana do Brasil. Por que, então, seu exercício, que parece pleno, é, na verdade, tão limitado?
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A democracia, como bem sabemos, é o melhor dos inventos políticos da humanidade, a despeito de todas as suas falhas. Mas há alguma coisa de patológico nas democracias quando elas criam realidades estanques, dois mundos visceralmente distintos no mesmo mundo aparente. Quando gera os “mais iguais”, quando anestesia a maioria para os crimes da minoria, criando vias de mão dupla para a fluência da vida social, parece que a democracia, na sua mecânica de funcionamento, começa a liberar gases que poderão sufocá-la em breve. Seu organismo deixa de produzir os anticorpos para defendê-la dos males desse funcionamento desequilibrado.
Não há clima para atentados à democracia, sustentam os analistas. É verdade. Não há nada favorável a mais uma funesta quartelada. Mas, se fosse discípulo de Durkheim, eu diria que a anomia em que vive a sociedade brasileira, que retornou ao seu berço esplêndido depois das grandes manifestações de rua de junho, vai provocar uma crise depois do próximo impasse grave. Se a febre está crescendo, é porque a infecção se alastra, se agrava. É preciso tratá-la. Chega de analgésicos para sua manifestação superficial. De soluções de meia sola.
Um dos seus focos está na produção e difusão da informação. Com a rede mundial de computadores, a internet, o cidadão, em tese, tem acesso a todas as informações. Mas, em geral, não àquelas informações que realmente lhe interessam, aquelas com as quais pode escrever a história que está ao alcance das suas mãos. Informação continua a ser poder, mais do que nunca. Quem tem poder não o cede graciosamente.
Os intelectuais, os mais habilitados a ir às fontes das informações preciosas e socializá-las, tirando-as das torres de marfim (ou das coberturas) e assim garantindo uma das bases de perenidade da democracia, como bem de valor coletivo, estão sendo privatizados. O intelectual vive cada vez mais num círculo vicioso. Produz para seus pares, usando o que produz como alavanca para uma carreira meramente acadêmica, como elemento de prestígio em currículos brilhantes, que são o código do abre-te-sésamo para verbas de pesquisa, títulos, posições, status e, eventualmente, fortuna.
A história é o cotidiano relevante. O cotidiano é múltiplo de fatos ao infinito, mas só algumas das sementes espalhadas todos os dias sobre o tecido social irão se desenvolver, “pegar”. As demais serão como a poeira que é varrida, juntada e atirada aos depósitos de lixo diariamente. É preciso discernir o aparente do real, o falso do verdadeiro, a propaganda da verdade, manipulada à exaustão por todos os meios de comunicação.
Um grande jornalista americano, Jack Anderson, observou que a máquina da democracia não pode funcionar tão azeitada que não permita a audição de ruídos. Se ela funciona em total silêncio é porque não está abrigando suficiente crítica. E sem crítica a democracia pode se tornar uma formalidade, em seguida uma ociosidade e, no futuro, talvez, uma inutilidade.
Neste aspecto, a democracia brasileira é uma máquina silenciosa. Isso porque a grande imprensa, aquela que realmente atinge as massas, está caminhando para se tornar um coro em uníssono. Ela faz críticas e algum barulho, desde que controle essa cacofonia do diverso. Admite outras vozes, desde que elas se incorporem à voz do dono, lhe sejam o eco, a extensão em falsete.
Pode haver variações, mas elas têm que ficar em torno do mesmo tema monocórdio. Há caminhos alternativos, mas como as passagens de uma ferrovia: depois de desviar para evitar o choque, o trem precisa voltar ao trilho principal. A direção, quem a estabelece, é o dono da ferrovia.
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Falsos democratas
O jornalista é um servidor do público. Sua função é auditar o que estão fazendo aqueles que exercem cargos e desempenham papéis públicos, no governo ou na iniciativa privada. Um jornal não existe apenas para distribuir elogios ou realizar a agenda do entretenimento, embora ambas sejam necessárias atividades jornalísticas, com direito ao próprio espaço. Sua principal tarefa é confrontar o discurso oficial à realidade, buscando a correspondência entre o que dizem que fazem os poderosos e o que eles efetivamente estão fazendo. A linguagem jornalística é, portanto, necessariamente crítica, embora não necessariamente negativa.
Há que se respeitar direitos individuais tutelados pela lei, mas superveniente é o interesse coletivo. Tudo o que for dito a respeito da oposição entre os dois anos, o do indivíduo e o da sociedade, desde que guardada a consistência dos dados e as formalidades da linguagem, deve ser dito de público.
Assim será alimentado um debate que, travado através da imprensa, possa ajudar a definição nos escalões institucionalmente decisórios. Isso difere do dano social que uma perseguição sistemática através da justiça tem provocado às publicações independentes e críticas, privando-as do tempo, da tranquilidade e das condições para o desempenho de sua função de fiscal do poder. Não por acaso assistimos ao fim da imprensa alternativa e do jornalista de combate, em plena democracia.
Qual a pedagogia de uma perseguição que cala os críticos e exalta os incensadores do poder? Qual a lição de direito que queixosos dão quando suas exacerbadas suscetibilidades servem de arrimo ao esmagamento de situações objetivas, concretas, que dizem respeito a temas de interesse coletivo? O que resulta de levar para os autos forenses um contraditório que deveria estar acessível a todos nas páginas dos jornais, deslocando para recônditos exclusivos o que seria melhor se socializado?
Esquecem esses perseguidores pela via judicial que são pessoas públicas. Por isso, deviam justificar essa condição com uma contraprestação de serviços ao público, fonte de seu poder ou – sem querer ou ser informado – de sua riqueza. Tais pessoas não querem reconhecer o povo como destino de tudo aquilo que realizam quando deixam o limite de seus domicílios particulares, o sagrado reduto dos seus lares, para ingressar na arena coletiva. Nela, tudo que é relevante exige explicação, divulgação, cobrança. É assim que funciona bem a máquina barulhenta da democracia.
A desatenção da opinião pública para esse fato explica o paradoxo de haver tanta informação circulando no mercado paralelamente a tanta desinformação e desorientação coletiva. Essa situação tem nexo causal com o fim da imprensa alternativa, a mais crítica e independente nos anos de chumbo, quase totalmente eliminada nos nossos dias democráticos. Formalmente democráticos, não há dúvida. Mas dominados por falsos democratas, medíocres líderes populares ou pessoas que desfiguraram por completo a noção de serviço público, tanto quanto a de povo. Em nome de quem falam, não sem antes tirar-lhe a voz, que, como sabemos, passa a ser a do dono.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Luta difícil, mas fundamental


Para variar, machismo vencendo de lavada. Resta a esperança de que amanhã vai ser maior.

MACHISMO ENCARNADO

Uma roda de homens comemora depois que uma menina tira o sutiã em frente ao posto 9. "Mamãe passou açúcar nimim", diz a camiseta de um orgulhoso heterossexual que se aproxima para tirar uma foto ao lado dela, que o ignora enquanto toma sol. Sem a presença da polícia, a opressão vem da quantidade de fotógrafos que a cercam como abutres em busca de carne, e gritam, se engalfinham para garantir a foto de seus peitos, como um produto a ser vendido, uma atração turística. Os aplausos provocados pela exposição de alguns poucos seios femininos escancaram o moralismo vergonhoso da sociedade brasileira que o Toplessaço, que aconteceu hoje em Ipanema, busca denunciar. A comoção agressiva gerada pelo topless na praia é um exemplo micro da situação geral das mulheres em nosso país, violentadas cotidianamente pelo machismo naturalizado como cultura e potencializado pela imprensa.


Fonte: Mídia Ninja.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

domingo, 15 de dezembro de 2013

A doença de ser normal



Já foi normal duas pessoas se digladiarem até a morte para entreter a multidão. Também já foi normal queimar mulheres na fogueira por bruxaria e fazer pessoas trabalharem sem remuneração com direito a castigos físicos só pela cor da pele. Era normal também humanos se alimentarem de sua própria espécie e casarem sem amor. Já foi normal passar 40 horas da semana fazendo algo que se detesta, mentir para ganhar dinheiro e devastar florestas inteiras em busca de um suposto desenvolvimento. Peraí, este último ainda é normal. Afinal, será que ser normal - e achar normais coisas que não deveriam ser - pode ser uma doença?

Segundo alguns psicólogos, sim. A doença de ser normal chama-se, segundo eles, normose: um conjunto de hábitos considerados normais pelo consenso social que, na realidade, são patogênicos em graus distintos e nos levam à infelicidade, à doença e à perda de sentido na vida.

O conceito foi cunhado quase que simultaneamente pelo psicólogo e antropólogo brasileiro Roberto Crema e pelo filósofo, psicólogo e teólogo francês Jean-Ives Leloup, na década de 1980. Eles vinham trabalhando o tema separadamente até que um terceiro psicólogo, o francês Pierre Weil, se deu conta da coincidência. Perplexo, Weil conectou os dois, e os três juntos organizaram um simpósio sobre o tema em Brasília, uma década atrás. Do encontro, nasceu uma parceria e o livro Normose: A patologia da normalidade.

No fim dos anos 70, Crema estava encucado com o fato de muitos autores apontarem uma "patologia da pequenez": o medo de se deixar ser em sua totalidade. Ele deparou-se com muitos pensadores, entre eles o alemão Erich Fromm (1900-1980), que falava do medo da liberdade, e o suíço Carl Jung (1875-1961), que afirmava que só os medíocres aspiram à normalidade. Crema misturou ao caldo a célebre declaração do escritor britânico G.K. Chesterton (1874-1936), que disse que "louco é quem perdeu tudo, exceto a razão", e acrescentou os anos de observação e prática em sua clínica pedagógica.

Assim nasceu o conceito de normose, que, segundo ele, "ocorre quando o contexto social que nos envolve caracteriza-se por um desequilíbrio crônico e predominante". A normose torna-se epidêmica em períodos históricos de grandes transições culturais - quando o que era normal subitamente passa a parecer absurdo, ou até desumano. Foi o que aconteceu no final do período romano, em relação à perseguição de cristãos, ou no início da Idade Moderna, com o fim da legitimidade da Santa Inquisição, ou no século 19, com a perda de sustentação moral da escravidão. E, segundo Crema, Leloup e Weil, é o que está acontecendo de novo, com a crise dos nossos sistemas de produção, trabalho e valores.

"O novo modelo é ainda embrionário, e os visionários dessa possibilidade de sociedade não-normótica ainda são minoria", diz Crema. Enquanto a maioria de nós se adapta a um ambiente social doente, quem resiste à normose acaba considerado desajustado, por não obedecer ao estado "normal" das coisas.

Como aquele cara que, mesmo ganhando o suficiente para fornecer educação, moradia e alimentação para si e seus filhos, é considerado vagabundo e louco por, em plena quarta-feira ensolarada, liberar as crianças da aula e levá-las à praia. Mas como? Em dia de semana? As crianças vão faltar aula? Pois é. De repente, ele acha que um dia na natureza vai fazer mais bem a seus filhos do que horas sentados em sala de aula. Será que ele não é saudável, e doentes estão os outros?

A desnormotização se inicia dentro de cada um. Que tal olhar para dentro de si mesmo? É aí que começa a revolução.

Bug cerebral

A cura da normose é trabalho individual, mas alguns esforços sociais podem ajudar. Para começar, seria um adianto se tivéssemos um novo modelo educacional. A escola poderia ser o lugar onde as crianças descobrem suas verdadeiras vocações - em vez de tentar padronizar os alunos e convencê-los a serem normais.

Mundo afora, estão surgindo escolas com uma nova lógica. Algo similar parece estar acontecendo no mundo empresarial, onde mais e mais empreendimentos estão dando voz à liberdade individual. O caso clássico, sempre citado, é o do Google, cuja sede, em Mountain View, na Califórnia, conta com salas de jogos, videogames, espaços ao ar livre e tempo reservado para que cada funcionário desenvolva seus próprios projetos para a empresa, com total autonomia.

Mas a cura da normose não vai ser resultado de uma ou outra iniciativa isolada - ela só vai ser possível quando houver no mundo gente suficiente disposta a questionar tudo o que achamos normal.

E talvez isso demore anos para acontecer. A explicação para isso pode estar num bug que todos carregamos no cérebro, que tem uma tendência de recusar sempre novos jeitos de olhar o mundo. É o que explica o psicólogo israelense Daniel Kahneman, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 2002, em seu livro Rápido e Devagar: Duas formas de pensar. Segundo ele, nosso cérebro confunde o que é familiar com o que é correto: ao ver ou sentir algo que desperta alguma memória, o cérebro define aquele "familiar" como "correto", da mesma maneira que o novo é decodificado como passível de desconfiança.

Esse sistema foi muito útil para nossos antepassados homens das cavernas, que não podiam mesmo sair comendo qualquer frutinha nova que aparecesse à sua frente. Mas, nos dias de hoje, que exigem novas ideias para lidar com um mundo em mudança constante, esse mecanismo cerebral virou um entrave à inovação. Segundo essa tese, a normose não é uma doença: é uma característica humana, moldada pela evolução. Ou seja, talvez ser normótico seja normal.

Fonte: Revista Superinteressante, julho de 2013 (adaptado).



sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Na microfísica

Era uma ágora. Na frente, ficavam sempre os mesmos, todos homens velhos e brancos, que assoberbadamente sentavam, falavam e riam do mesmo jeito, como em domínio de linguagem própria dos que compartilham determinada posição de poder. O desleixo que aqueles corpos permissivamente gordos expressavam em sinal de afirmação de livre arbítrio era o molde que lhes conferia identidade, status, ordem reconhecível e estável conservada. A deselegância e a aspereza lhes agregavam valor veladamente. Não precisavam observar outros códigos que não esse, que eles mesmos criaram em ágoras de outros tempos. Babando em suas gravatas e arrotando egocentrismos, eram, ao mesmo tempo, personagens e público principais do espetáculo.
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"Nada mudará a sociedade se os mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo e ao lado dos aparelhos de Estado a um nível muito mais elementar, cotidiano, não forem modificados." (Foucault - A Microfísica do Poder).
 
  
 
 

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Clarice Lispector

Porque ela faria 93 anos hoje e este é meu conto preferido.



Amor
Clarice Lispector

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

 Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

 Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

 No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

 Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranquila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

 O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

 O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

 A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

 O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

 Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

 Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

 Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

 A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

 O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

 Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

 Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

 Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

 Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

 A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

 De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

 Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

 Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

 Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

 Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranquila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

 Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

 As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

 Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

 Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

 Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. O sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

 Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

 Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

 Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranquilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

 Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

 Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

 Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

 Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

 Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

 Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

 — O que foi?! gritou vibrando toda.

 Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

 — Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

 Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

 — Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

 — Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

 Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranquila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

 Acabara-se a vertigem de bondade.

 E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.


Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998, pág. 19, incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.