segunda-feira, 29 de julho de 2013

Marcha das vadias RJ 2013


A Marcha das Vadias do Rio 2013 aconteceu no último sábado, dia 27 de julho, e, como das outras duas vezes (2011 e 2012), marquei presença lá. Como sempre muito organizada, seu agendamento foi realizado com a devida antecedência e a polícia avisada seis meses antes de que ocorreria a partir das 13h em frente ao posto 5, na praia de Copacabana. Nesse dia, era para a Jornada Mundial da Juventude católica estar acontecendo bem longe, lá em Guaratiba. Mas, com as fortes chuvas dos últimos dias, o lugar (onde 300 árvores foram arrancadas só para receber o papa) ficou enlamaçado e o palco da festa religiosa acabou se mudando justamente para a mesma praia da manifestação feminista.

Diante desse inconveniente, a organização da Marcha resolveu seguir no sentido Ipanema e, como sempre, arrasou, reuniu muita gente, foi puro sucesso. Logo no início, duas pessoas realizaram uma espécie de ritual que consistia em danificar imagens de santa e crucifixos, no avesso da postura do público do evento da outra ponta da praia. Esse simples detalhe foi o grande destaque da mídia, claro, e passou a dar margem para críticas ao protesto. Confesso que todo esse auê em torno da questão me dá preguicinha, mas, já que toquei no assunto, vou direto me reportar ao post "Ui, quebraram a santa", da Revista Wireshoes:

"Enfrentar os símbolos da santa Igreja é uma forma de dizer não, ela não detém a verdade. Não, eu não acredito nela. Sim, eu posso dar de ombros pros ensinamentos que ela propõe.
Mas eu fico triste demais quando alguém zomba da minha fé. Mas eu choro quando alguém questiona os meus dogmas. É a senha do relativismo individual para que todos nós recuemos. Eu não recuo. E não quero deixar VOCÊ triste. Não sei como pode ser tão difícil perceber que a crítica está direcionada para a instituição Igreja. Claro que eu já sei também que vivemos o tempo da emoção e do afeto. E que a racionalidade, talvez por suas próprias limitações, tenha sido abandonada na elaboração de argumentos. A nebulosa afetual que nos fala Maffesoli. Acho que todos já percebemos que estamos diante desse novo tempo. E que toda e qualquer crítica é lida como uma desrespeito à pessoa. No episódio da santa, foi dito que os 3 milhões de fiéis ali foram agredidos. Por dois militantes nonsense de uma Marcha horizontal e livre.
O que eu vejo é que nenhuma ação anticlerical é possível. Tudo que eu fizer é uma agressão individual. Caso de polícia. Quebrei uma santa. Nossa. Violei a liberdade religiosa e impedi o culto. O que me resta é ver o Papa passar. Minha proposta (sim, eu tenho uma proposta, a loka etc) é que enfrentemos. Vamos voltar a dizer que as religiões cristãs se erguem sobre uma cultura do ódio. Que historicamente eles tem impedido as pessoas de existirem. Impediram negros, índios, mulheres, gays, muçulmanos. Que eles nunca abandonaram a guerra santa. Que ~respeitar~ o discurso deles é legitimar o ódio. 
Que a Virgem Maria não é uma imagem feminina. É uma das imagens mais machistas já criadas pela cultura humana. Que não existem mulheres na Igreja deles. Elas lavam os pés e puxam o saco de homens. Que Simone de Beauvoir já dissecou A Religiosa (ou A Mística) no segundo volume de O Segundo Sexo. A liberdade mistificada da mulher, promovida pelas religiões, bem como a aniquilação da carne da mulher religiosa. Estranhamente, as feministas que apoiaram os manifestantes também fazem ressalvas individualista. “Eu não faria isso“, “eu respeito quem não respeita mas não faria“. Um espiral de justificativa que para mim é o cerne da questão: ´para combater criacionismo, cartilha bioética papal e que tais PRECISAMOS enfrentar as religiões. Ué. Não teve outro jeito. Até chegarmos nessa sinuca teórica. Se-eu-critico-não-respeito. É uma falsa sinuca. O relativismo é um método de compreensão. Não é a aceitação de todas as práticas e discursos. Podemos sair do armário. Podemos dizer que falta senso crítico àqueles que sacralizam um homem segundos depois da fumaça vaticana. O preço que estamos pagando por não enfrentar é alto demais. Cada vez mais vemos pastores e padres invadindo o Estado. Cada vez mais abaixamos a cabeça e dizemos “ó, mas eles tem o direito de estar“. Como se não soubessemos o que eles fazem quando tem o Estado nas mãos. Ao invés de ficarmos dizendo sem parar que não quebraríamos santa, está na hora de dizer que cagamos e andamos se uma santa foi quebrada."
De fato, não me choca nada o gesto daqueles dois que quebraram os objetos religiosos. Acho tragicômico julgarem a cena como um tributo à intolerância sem perceber que a maior violência é a perpetrada pelas igrejas contra seres humanos de carne e osso, e não contra objetos. Ah, já estou cheia dessa gente que não se acha violenta, acreditando que violência é só agressão física. Antes de condenarem a reação, deveriam enxergar de quem partiu a ação originária, assumir a "culpa" e tentar aplicar o que diria Francisco: compreender antes de maldizer.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Há saída?

"De quantos não é
O sonho de não sonhar
Pra poder fugir
De quantos não é
O sonho de desenhar
Pra fazer surgir
Traçar porta e maçaneta no ar
E sair."


Se não concordo com o sistema capitalista, posso viver sem ele? 

Se não concordo com a economia monetária, conseguiria viver de escambo, por exemplo? 

No meu país, preciso ganhar bem acima da média da população para conseguir ter acesso a serviços básicos (com qualidade razoável), como educação e saúde. Devo me curvar à lógica imoral da extração de mais-valia para obter esse básico? Há saída?

Capitalismo não é liberdade e nem democracia: é a ditadura do capital. E, como toda ditadura, temos dois lados em choque: o do opressor e o do oprimido.

Há quem não enxergue a realidade (a maioria). Há quem a enxergue e escolha o lado opressor, ativa ou passivamente. Eu a enxergo, mas, comprimida por essa laranja mecânica, já me vejo oprimida e procuro me defender para manter um padrão de vida médio sem ter que fazer o trabalho sujo, ou seja, aquele no qual efetivamente se baseia todo o sistema capitalista, traduzido no modo de produção caracterizado pela extração da mais-valia para efeito de produção e reprodução do capital em escala sempre crescente. 

Quero moradia digna, alimentação adequada, saúde, educação/cultura e lazer.  Por isso, debaixo da ditadura do capital, o serviço público se apresenta, a princípio, como uma alternativa paliativa de trabalho para quem, por uma questão moral, não aguentaria se "prostituir", se corromper para ser mais uma pessoa usada à reiteração da injustiça do capitalismo só para ganhar dinheiro em troca e, assim, garantir uma medíocre liberdade existencial. Enquanto eu puder me defender dos tentáculos do sistema, não me dobro. Foi por pura estratégia de defesa ideologicamente orientada que, há três anos, resolvi trabalhar na administração pública. De alguma maneira, é confortante pensar que até que venho me saindo o melhor que posso diante do comprometido contexto, mas isso está muito longe de ser a situação ideal.

Mais do que contaminada pela lógica fundamental do sistema, a máquina estatal serve a ele, ora mais, ora menos, mas sempre. O caso das agências reguladoras brasileiras é estarrecedor. Desde o princípio, criadas no governo neoliberal de FHC, são completamente capturadas, é muito triste. Como trabalhei na Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, sou testemunha e assino embaixo de tudo o que se denuncia no artigo abaixo. E a pergunta reverbera: há saída?

Atuação frouxa e perniciosa da ANS
por Lígia Bahia e Mário Scheffer, na Folha de S. Paulo
25/07/2013

No jargão dos planos de saúde, sinistro é a perda financeira a cada demanda de um cliente doente. Já a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) foi tomada pelo sinistro no sentido popular do termo – ou seja, aquilo que é pernicioso.
Dois ex-executivos de planos de saúde –um serviu à maior operadora do país e outro, à empresa líder no Nordeste– acabam de ser nomeados diretores da ANS.
Desde sua criação, há 13 anos, a agência foi capturada pelo mercado que ela deveria fiscalizar. As medidas sugeridas para coibir o conflito de interesses na ANS –frise-se, um órgão público sustentado com recursos públicos– sempre foram contestadas sob o argumento de que tais pessoas “entendem do setor”.
Assim, a agência instalou em suas entranhas uma porta giratória, engrenagem que destina cargos a ex-funcionários de operadoras que depois retornam ao setor privado.
A atuação frouxa da ANS, baseada no lucro máximo e na responsabilidade mínima das operadoras, tem a ver com essa contaminação. Impunes e protegidos pela fiscalização leniente, os planos de saúde ao fim restringem atendimentos e entregam emergências lotadas e filas de espera para consultas, exames e cirurgias.
As empresas deixaram de vender planos individuais, pois têm o aval da ANS para comercializar planos coletivos a partir de duas pessoas, com imposição de reajustes abusivos e rescisão unilateral de contrato sempre que os usuários passam a ter problemas de saúde dispendiosos. Sob o olhar complacente da ANS, dão calote no SUS, pois não fazem o ressarcimento quando seus clientes são atendidos em hospitais públicos.
Os planos de saúde doam recursos para candidatos em tempo de eleição que, depois de eleitos, devolvem a mão amiga com favores e cargos. Há coincidências que merecem explicação.
Em 2010, as operadoras ajudaram na eleição de 38 deputados federais, três senadores, além de quatro governadores e da própria presidente da República. Da empresa que doou legalmente R$ 1 milhão para a campanha de Dilma Rousseff, saiu o nome que presidiu a ANS até 2012.
O plano de saúde que doou R$ 100 mil à campanha de um aliado –o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral– emplacou um diretor da agência que, aliás, acaba de ser reconduzido ao cargo.
Em 1997, o texto do que viria a ser a lei nº 9.656/98, que regula o setor, foi praticamente escrito por lobistas dos planos. Em 2003, na CPI dos Planos de Saúde, as empresas impediram investigações. Em 2011, um plano de saúde cedeu jatinho para o então presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia (PT-RS), em viagem particular.
Quase mil empresas de planos de saúde que atendem 48 milhões de brasileiros faturaram R$ 93 bilhões em 2012. Com tal poder econômico, barram propostas de ampliação de coberturas, fecham contratos com ministérios e estatais para venda de planos ao funcionalismo público, definem leis que lhes garantem isenções tributárias. E se beneficiam da “dupla porta” (o atendimento diferenciado de seus conveniados em hospitais do SUS) e da renúncia fiscal de pessoas físicas e jurídicas, que abatem do Imposto de Renda os gastos com planos privados.
Agora as operadoras bateram às portas do governo federal, pedindo mais subsídios públicos em troca da ampliação da oferta de planos populares de baixo preço –mas cobertura pífia.
No momento em que os brasileiros foram às ruas protestar contra a precariedade dos serviços essenciais, num rasgo de improviso os problemas da saúde foram reduzidos à falta de médicos. O que falta é dotar o SUS de mais recursos, aplicar a ficha limpa na ocupação de cargos e eliminar a promiscuidade entre interesses públicos e privados na saúde, chaga renitente no país.

MÁRIO SCHEFFER, 46, é professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP); LÍGIA BAHIA, 57, é professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro

terça-feira, 23 de julho de 2013

Classe média brasileira: antro de desonestidade


"A classe média é uma abominação política porque é fascista, é uma abominação ética porque é violenta, e é uma abominação cognitiva porque é ignorante. Fim." (Marilena Chauí)


(o apelido "coxinha" denota o típico membro da classe média brasileira) 
A classe média é, historicamente e em geral, o que existe de mais reacionário em uma sociedade. Como lembrou o jornalista Paulo Nogueira (DCM), nas grandes transformações da humanidade, como na França de 1789, lá estava a classe média na defesa assustada da manutenção da ordem. Na Alemanha de 1933, foi a classe média que pôs Hitler no poder. Nos Estados Unidos destes dias, é a classe média — obesa, entupida de pipoca e coca cola gigante, sentada no sofá vendo blockbusters de Hollywood — que dá sustentação a guerras como a do Iraque e a do Afeganistão. Uma das razões do sucesso escandinavo como sociedade é que, lá, a classe média foi educada, e aprendeu a importância do verbo repartir. A classe média brasileira ainda está bem longe disso. É racista, preconceituosa, homofóbica. Detesta negro, detesta nordestino, detesta gays. Detesta tanta coisa que, exatamente por isso, é detestável, como disse Marilena Chauí.
E este é o problema fundamental do Brasil: sua classe média. Não aponto para o grupo rotulado de “nova classe média”, até porque sequer há consenso acerca da plausibilidade sociológica de tal classificação. Refiro-me aqui a uma camada da sociedade que tem lá suas heterogeneidades (me considero prova disso), mas que, predominantemente, adota uma postura social particularmente desonesta, correspondente à própria ignorância que cultiva. É a partir dessa predominância que analisamos a classe média como uma categoria genericamente identificável, não cabendo, sob essa perspectiva, a invocação das exceções.
Levada pelo fluxo ideológico, o traço principal da classe média brasileira é exatamente seu apego ao status quo, que a torna ferozmente conservadora. Por corolário, é notável sua tacanhez de espírito traduzida em uma economia de ousadia para o desenvolvimento humano, dado o receio em ceder a um aprofundamento genuíno de sua reflexão sociopolítica – quando a realiza. Considera-se esclarecida com seus diplomas universitários supostamente atestantes, mas se mantém alienada, míope sobre quem realmente é e sobre o papel que desempenha e/ou pode desempenhar no contexto social, invertendo valores em uma hipocrisia frequentemente inconsciente e reprodutora.
Elitista, a classe média brasileira se acha recompensada pelos méritos intrínsecos de seus integrantes e vê a desigualdade social como um fato natural. Não importa que seus filhos já tenham nascido em condições sociais favoráveis como mero fruto do acaso, de contingências ligadas à estrutura da sociedade, pois ainda assim advogarão para si que foram recompensados por uma lógica meritocrática.  Se uma pessoa pensa que tem acesso a determinados bens materiais ou culturais, inatingíveis para boa parte da população, como uma recompensa por suas qualidades intrínsecas, isto lhe dá um reconfortante sentimento de superioridade, acompanhado do desprezo pelos que não são tão bons.
Mas ela poderia pensar diferente: que estar na universidade, por exemplo, em um país de analfabetos, significa que foi privilegiada por uma série de circunstâncias – e então, em vez da sensação de superioridade, poderia vir um sentimento de responsabilidade social. Mas é muito mais gratificante, para o indivíduo que pertence à elite, olhar para o balconista da loja, para o operário, para o engraxate, e pensar “puxa, como eu sou superior” do que refletir que um pequeno acidente de percurso poderia inverter as posições[1].
No entanto, o comodismo que acomete a classe média em face de sua confortável posição social inibe a tomada de consciência, que dá lugar a “sintomas” tipicamente médio-classistas como: se fazer de vítima do Estado; se fiar e reproduzir como papagaio o discurso da grande imprensa que sustenta, já que, se achando muito sabida, imune à manipulação ideológica, não desenvolveu pensamento crítico para alcançar visão própria e barrar a manipulação midiática que a enreda; reproduzir ódio de classe inconfessadamente; ser racista inconfessadamente; ser reacionária; ser antissolidária com “verniz” de caridosa; venerar os Estados Unidos sem perceber o grave problema do imperialismo; ter apreço por livros de autoajuda, best sellers e tudo o que for alienante, ser movida pelo medo... enfim, uma lista que se estenderia demais para este espaço. Para uma sátira a respeito, recomendo o (lamentavelmente abandonado) blog  http://classemediawayoflife.blogspot.com.br/.
A classe média é exatamente quem tem mais acesso à educação e, por isso mesmo, quem, em tese, teria mais condição de promover uma sociedade melhor, justa. Mas, capturada pela ideologia dominante em nosso capitalismo pungente, ao invés de estar atenta às forças que impedem o avanço civilizatório, permanece tapada, cuidando apenas de seu próprio umbigo. O conhecimento adquirido é só o necessário para ocupar um posto de trabalho valorizado, para manter seu padrão de vida. Sua função social se limita, basicamente, a esse aspecto. Qualquer conhecimento que ultrapasse essa finalidade exclusiva de se colocar no mercado de trabalho é inferior ou diletante. Nessa lógica, é banal passar de ano escolar colando na prova de história e matar as aulas de filosofia e de sociologia na faculdade, porque, a quem não seguirá essas carreiras específicas, são matérias que não serviriam para nada – justamente as mais importantes à emancipação humana.
Por aí, já dá para sacar o quão desonesta é a classe média. Em primeiro lugar, cada médio-classista genérico é desonesto consigo mesmo na medida em que se aliena, escondendo de si a compreensão da realidade histórica, social, política e cultural que o cerca, sabotando-se em uma entrega fácil aos vieses discursivos impregnados da ideologia dominante, que passam a reproduzir desbragadamente, trabalhando a seu favor.  Desonestos consigo mesmo porque sequer procuram sair das bolhas em que vivem antes de se considerarem esclarecidos. Nessa oportunidade, impossível não lembrar de Kant:
"Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento. A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha (naturaliter maiorennes), continuem, no entanto de bom grado menores durante toda a vida. São também as causas que explicam por que é tão fácil que os outros se constituam em tutores deles. É tão cômodo ser menor. É difícil, portanto, para um homem em particular desvencilhar-se da menoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar amor a ela, sendo por ora realmente incapaz de utilizar seu próprio entendimento, porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim proceder. Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou, antes, do abuso de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua menoridade. Quem deles se livrasse só seria capaz de dar um salto inseguro mesmo sobre o mais estreito fosso, porque não está habituado a este movimento livre. Por isso são muito poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio espírito, emergir da menoridade e empreender então uma marcha segura. Que, porém, um público se esclareça a si mesmo é perfeitamente possível; mais que isso, se lhe for dada a liberdade, é quase inevitável. Pois, encontrar-se-ão sempre alguns indivíduos capazes de pensamento próprio, até entre os tutores estabelecidos da grande massa, que, depois de terem sacudido de si mesmos o jugo da menoridade, espalharão em redor de si o espírito de uma avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por si mesmo. (...) Para este esclarecimento, porém, nada mais se exige senão LIBERDADE. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões. Ouço, agora, porém, exclamar de todos os lados: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas exercitai-vos! O financista exclama: não raciocineis, mas pagai! O sacerdote proclama: não raciocineis, mas crede!" (A esfera pública, como nos mostra Habermas, se constrói pela comunicação social).
E a classe média é desonesta porque esbanja moralismo sem reconhecer os atos corruptivos que realiza no seu dia-a-dia. Já pensou se existisse um aplicativo de celular que, acompanhando seu proprietário, fosse capaz de fazer uma "patrulha moral" para detectar situações do cotidiano em que atos de corrupção ocorrem, não com dinheiro público, mas em relação a normas em geral, e deixar um bilhetinho, ou algum alerta de que isso é corrupção e que a pessoa é hipócrita? E o pior é que a reação seria do tipo "ah, uma patrulha do politicamente correto..." Ora, qual é a moral dessa pessoa de ir para a rua pedir o fim da corrupção? A corrupção tem a ver com a postura de vida, incoerência entre valores que defende e pratica, tem a ver com o modo como desenvolve suas relações sociais. A corrupção, afinal, é movida por comportamentos sociais que obedecem à lógica privatista tipicamente médio-classista, segundo a qual, por exemplo, chega-se ao cúmulo de se legitimar a sonegação de impostos e de se sustentar veementemente variadas mentiras como se fossem verdades, como o caso vergonhoso da manifestação dos médicos "com fronteiras" brasileiros.

Até quando tanta hipocrisia, tanto cinismo, tanta desonestidade?


("Kualé, leski, tá me tirandu? Que issu fera! Não tenho culpa se tu nasceu pobre, foda-se")





[1] MIGUEL, Luis Felipe. A democracia domesticada.

domingo, 21 de julho de 2013

Rio, você continua esquisito




Apesar das mudanças naturais e inevitáveis que a passagem do tempo proporciona, procuro guardar migalhas de sabedoria da infância – para mim, muito valiosas. Como Saint-Exupéry, acredito e levo muito a sério  o ponto de vista das crianças, que têm uma sensibilidade aguçada e uma capacidade ímpar de enxergar o que se passa ao redor sem o viés do costume. Por isso, faço questão de lembrar e conservar aquela visão de mundo que estranha coisas tidas como banais ou que os adultos dizem que "são assim mesmo". Talvez eu jamais tenha superado completamente a fase dos porquês, e isso até que me parece bem saudável. Muitos podem pensar: – ai, que mala!, mas, a quem não compreende ou interessa essa postura questionadora, passo a palavra ao Pequeno Príncipe: "tu não és um ser humano de verdade, tu não passas de um cogumelo." Voilà.

Hoje vou expor uma dessas coisas que nunca entendi quando criança e continuo sem ver sentido do alto dos meus 27 anos: não acho racional o modo como o urbanismo se deu na minha cidade, o Rio de Janeiro. Eu, pequena, queria sair por aí, conhecer, fazer amigos, explorar a natureza, correr e brincar. Mas estava confinada em um apartamento da zona sul, parte nobre do território municipal, de onde, a uma distância de um quilômetro, se via a maior favela do continente, a Rocinha. Havia um playground no meu prédio, mas nem sempre frequentado por gente interessante. E se um provável amigo estivesse na Rocinha? E se estivesse no condomínio ao lado? A vida segregada e tão proibitiva é muito esquisita.

E depois, para ir a outros bairros, eu tinha que pegar túnel. Quem fez os túneis não pensou que também pedestres podem querer transitar de um bairro a outro? Ou ciclistas? Por que não se planejou uma área onde todos pudessem passar? – perguntava-me e pergunto-me. E, se construíram uma cidade privilegiando o uso de automóveis, por que sequer há espaço suficiente para vagas de garagem na maioria dos edifícios? É tudo muito incoerente e nenhuma tentativa de justificação desse cenário urbano, que envolve inúmeros outros aspectos, me satisfaz. O modo como nossa paisagem artificial se engendrou só pode ser fruto de uma lógica anticoletivista ou de uma "inércia epistemológica", como se refere o urbanista Sérgio Magalhães sobre a falta de inovação em relação ao modelo modernista de Le Corbusier.

Não bastassem os erros de planejamento urbano que se fazem notáveis mesmo aos olhos de uma simples criancinha, o problema maior é: como corrigir essa burra configuração feita de cimento e concreto, sabendo-se que isso envolve a moradia de tanta gente? Como rearranjar eficazmente o espaço urbano sem violentar o direito adquirido e a própria dignidade das pessoas?  Derrubar tudo para refazer a cidade e reorganizá-la adequadamente está, claro, absolutamente fora de questão. Segundo Sérgio Magalhães, o urbanismo contemporâneo já concebe seu ideário de revisão do modernismo, porém seus valores ainda não participam das decisões políticas e empresariais majoritárias na produção das novas edificações e de novos trechos urbanos, de modo que as cidades continuam sendo construídas para o isolamento, nos impingindo uma vida que ainda está longe de ser livre de "catracas", no mais amplo sentido da expressão que diga respeito à livre circulação urbana. Assim, não obstante o prazer que sentimos ao passear por cidades bem conformadas urbanisticamente, continuamos a construir cidades espacialmente desestruturadas.

Ainda de acordo com Magalhães, não precisamos que as cidades sejam antigas (a exemplo de Paris) para delas desfrutarmos. Tampouco precisa haver privilégios: o espaço público de alta qualidade não exige a riqueza econômica ou o contraponto de outros mal compostos e anódinos. É que a qualidade não se apresenta pela antiguidade ou pela raridade, mas pela conjunção de fatores objetivos, tais como o modo como os edifícios se articulam entre si, o uso em diversidade que lhes é conferido, a escala que veem a compor, a configuração do espaço, a textura, entre outros elementos arquitetônico-urbanísticos, funcionais ou simbólicos.

É bonito imaginar como poderia ser. Mas, ao som das buzinas e dos motores, sob as sombras do concreto e da fumaça que nos cercam, continuo pensando aqui que enquanto continuarmos sustentando o atual modelo (hostil) de "organização" desta Cidade Maravilhosa, a quem puder,  fugere urbem.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Não me ajoelho, medito

A igreja católica sempre teve alguns membros que ajudam velhinhos e crianças pobres e outros necessitados. Outros setores, com destaque para a teologia da libertação, são historicamente ligados a movimentos sociais. A eles, o meu sincero respeito. Agora... a instituição igreja católica presta um enorme desserviço ao mundo há séculos. Mais do que ser uma organização que acumula montanhas de dinheiro e propriedades (e não as distribui, em um ato egoísta e pouco cristão); mais do que ser historicamente envolvida em escândalos sexuais (muitas vezes envolvendo abuso de menores); mais do que influenciar governos indevidamente, ser grotescamente machista, achar que homossexuais são pecadores e chegar ao cúmulo de condenar métodos anticoncepcionais como a camisinha, trata-se de uma organização internacional poderosíssima que trabalha contra a Liberdade e a Felicidade – essas sim, merecem caixa alta. São gerações e gerações, há centenas de anos, sofrendo com uma lista sem fim de culpas, dogmas, proibições e outras bobagens sem fundamento na realidade que representantes do catolicismo nos enfiam goela abaixo. E, para nosso azar, o Brasil é “o maior país católico do mundo”. Aqui tem uma igreja por esquina, a maior TV do país apoia a religião, crucifixos adornam repartições públicas, deus está até no dinheiro. No Brasil mesmo o mais ateu dos políticos tem que ir lá ajoelhar e comer hóstia ou não se elege pra nada. No Brasil a pessoa nunca foi domingo na missa, mas na hora de se casar vai ajoelhar na igreja e prometer devoção eterna ao catolicismo e suas leis. Pobre de nós. Em nenhum outro lugar do globo tem tanta gente infeliz e com a liberdade tolhida por essa organização criminosa. E seu chefão vem aí, chega segunda-feira agora. Claro, vai ser tratado como santo pela mídia – Globo à frente – e vai ser reverenciado por uma multidão de jovens-velhos lobotomizados. E você, também vai se ajoelhar? Eu não.
 
(Lino Bocchini)
 
As guerras santas não ficaram no passado.
 
Religião afasta as pessoas de Deus. Seguir o que uma instituição diz é medo de mergulhar em si mesmo.
"Este é o problema: as noventa e nove ovelhas criam todas as religiões e a verdadeira Religião só acontece à ovelha que se extravia. Seja corajoso! Mova-se para além da clareira, vá para a selva! A vida está lá e só lá você crescerá. Poderá haver sofrimento, porque não há crescimento sem dor. Pode haver uma cruz, porque não existe maturidade sem crucificação. A sociedade se vingará — aceite isto! Está fadado a ser assim. Quando a ovelha voltar, as noventa e nove dirão: "esta é a pecadora! Esta ovelha se extraviou, não faz parte de nós, não nos pertence!". Jesus diz que o pastor voltará para a sua casa, chamará seus amigos e festejará porque uma ovelha se perdeu e foi encontrada. Jesus diz que sempre que um pecador entra no Céu, há regozijo porque a ovelha que se perdeu foi encontrada.
(...)
Meditar nada mais é que encontrar-se com o seu vazio interior: reconhecendo-o, não escapando, vivendo através dele, não escapando, sendo através dele, não escapando. Então, de repente, o vazio torna-se a plenitude da vida. Quando você não foge, ele é a coisa mais bela, a mais pura, porque só o vazio pode ser puro. Se algo existe dentro dele, é porque ele foi maculado; se existe qualquer coisa nele, então a morte entrou; se algo existe lá, então a limitação entrou. Se há alguma coisa nele, então Deus não pode estar. Deus significa o grande abismo, o supremo abismo. O abismo está presente, mas você nunca é treinado para olhar para dentro dele. É preciso encontrar-se com o vazio interior. Quando você mergulha nele, repentinamente o vazio muda sua natureza — torna-se o Todo. Então não é mais vazio, não é mais negativo; é a coisa mais positivada existência. A aceitação é a porta. Quando você está embriagado por este mundo, não pode ter sede de outro. Quando um homem não está embriagado por este mundo, a sede surge. E essa sede não pode ser satisfeita por nada que pertença a este mundo; só o Desconhecido pode satisfazê-la, só o Invisível pode satisfazê-la."
(Osho - A semente de mostarda, vol. 1)
 

Mafalda soy yo




 
 
 
 
 

terça-feira, 16 de julho de 2013

Vícios: tudo pode ser droga

 
Não suporto a hipocrisia da distinção entre drogas lícitas e ilícitas, sou a favor da legalização total. Se alguém quiser fazer um mal a seu próprio corpo usando tabaco, álcool, cocaína ou qualquer outra droga, é a liberdade individual humana que está em jogo, não cabe a ninguém dizer que isso não é permitido, muito menos ao Estado. Entretanto, é claro que os que estão sob efeito de alucinógenos podem causar danos pesados socialmente, como é o caso de quem bebe e pega no volante em seguida: a pessoa está no âmbito de sua liberdade individual, mas é a sociedade quem, muitas vezes, paga caro demais por isso. Mesmo diante desses casos, não acho que caiba – e tampouco funcione – a proibição do consumo de drogas, e sim o controle estatal sobre o risco de acidente, a exemplo da Lei Seca. De qualquer modo, o que leva alguém a consumir um produto entorpecente é que é a raiz do problema e, portanto, é o que deve ser atacado, se possível.

Por outro lado, observo que a ameaça de dependência química não vem somente dessas drogas “clássicas”. Uma pessoa pode se viciar em outra pessoa, em paixões ou em ideias, por exemplo. São vícios em emoções, na verdade, e deveríamos compreender que quando isso acontece não é apenas psicológico. É bioquímico. A heroína usa os mesmo receptores nas células que nossas emoções usam. É fácil verificar que, se podemos nos viciar em heroína, podemos nos viciar em qualquer peptídeo natural, em qualquer emoção. A busca que as pessoas que procuram uma droga fazem está relacionada a achar um certo estado emocional. Não olhamos nada sem envolvermos o aspecto emocional. Como mostra o filme Quem somos nós?, os comportamentos habituais derivados da educação e da vida em sociedade são verdadeiros vícios. Um dos depoimentos que apresenta deixa essa ideia bem clara:
 
Por que você tem vício? Porque não tem nada melhor. Não sonhou com nada melhor. [...] Se eu mudar minha mente, mudarei minhas escolhas? Se eu mudar minhas escolhas, minha vida mudará? Por que não consigo mudar? Em que estou viciado? Irei perder aquilo em que estou quimicamente apegado. A que pessoa, lugar, coisa, época ou acontecimento estou quimicamente apegado e não quero perder porque posso ter de vivenciar sua privação química? Por isso o drama humano.
 
De acordo com a teoria quântica, as possibilidades da consciência lhe permitem criar a realidade. Nesse processo, que é individual e subjetivo, transformações bioquímicas no cérebro levariam à superação de comportamentos rotineiros. Ao longo da história da humanidade, todo esse potencial teria sido ocultado pela ciência e pela religião, já que uma se apoiaria no determinismo e a outra na existência de um Ser transcendente, ambos responsáveis pela nossa impotência frente aos fatos da vida. Também segundo a física quântica, todas as coisas estão interligadas (curiosamente de acordo com a minha ideia de espiritualidade, de unidade de tudo e todos com Deus).
 
E o que é o vício? Bom, em uma definição bem simples, é algo que não se consegue parar de fazer. Buscamos situações que vão suprir os desejos bioquímicos das células do nosso corpo criando situações que satisfaçam nossas necessidades químicas. Um viciado sempre vai precisar de um pouco mais para poder satisfazer sua necessidade química.
 
De uns tempos para cá, tenho a percepção  e isso é muito pessoal de que o que é visto como irreal por quase todo mundo é muito mais real para mim do que a "realidade" do mundo. Fomos condicionados a crer que o mundo externo é mais real do que o interno. Porém, conforme os estudos científicos mais recentes, especialmente da física quântica e das neurociências, é justamente o contrário. Esses estudos dizem que o que acontece dentro de nós é que cria o que acontece fora. A quem isso parecer loucura, talvez seja aconselhável refletir melhor: pode ser que o próprio modo habitual de conceber a realidade seja um vício.
 
 
 

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Consciência

Tire a mão da consciência e meta
No cabaço da cabeça
Tire a mão da consciência e ponha
Na cabeça da vergonha
Tire a mão da consciência e meta no cabaço da cabeça
Ponha oxigênio e gás carbônico no ar da consciência
E comida na barriga dela
Ponha olhos nas lágrimas dela

(Arnaldo Antunes)



Mudar não é simples. Sair do padrão imposto pela sociedade também não é. Mas tudo isso é valioso, libertador e faz com que você consiga enxergar o mundo com um pouco mais de clareza. E a mudança está nas mãos de cada um. Deixar de repetir posturas que não acrescentam nada ao mundo só depende de cada um de nós. É a velha história da Matrix. Qual a cor do seu comprimido?

(Carol Patrocínio)

Sobre o crescimento econômico brasileiro

Compartilho análise do professor Lucien Alhanati:
Restabelecendo a verdade
Qualquer dona de casa sabe que o sucesso de sua administração financeira não é avaliado somente pelo que ela recebe e sim pelo confronto entre que o que recebe e o que gasta. Não adianta ganhar muito se o gasto for maior ainda.
É desta maneira que ocorre em todas as organizações e deveria ser em relação aos países. Mas não é assim que é mostrado pela mídia e pelos “especialistas” onde só é avaliado o ativo. O passivo ambiental é ignorado. Será esquecimento, incompetência ou conveniência.
Vamos mostrar que o crescimento da economia brasileira é muito bom principalmente se comparamos com o de outros países e grupos econômicos. Se levarmos então em conta o passivo ambiental o nosso crescimento é ótimo. É preciso não esquecer que o passivo ambiental é uma conta que será paga obrigatoriamente pelo atual ou pelas futuras gerações, e quanto mais tempo passar maior será a conta a ser paga.
Vamos comparar o crescimento percentual do PIB brasileiro com o de outros países usando o gráfico elaborado com dados do FMI e publicado pelo jornal O Globo em 10/07/13.




O crescimento percentual do PIB brasileiro é praticamente igual ao da Rússia, supera o da África do Sul, dos EUA e do Japão, sendo superado apenas pelo da Índia e da China.
Vamos comparar o crescimento percentual do PIB brasileiro com o de blocos econômicos usando o gráfico elaborado com dados do FMI e publicado pelo jornal O Globo em 10/07/13.



O crescimento percentual do PIB brasileiro é apenas pouco inferior ao do mundo, que foi engordado com o da Índia e da China.
Qualquer economista sabe que toda atividade produtiva humana acarreta um passivo ambiental. Como não existem dados sobre o passivo ambiental produzido pelos países, vamos considerar apenas uma parte deste passivo utilizando os dados da demanda energética, via matriz energética. Levando em conta agora o passivo ambiental que corresponde em parte ao custo desta produção.

                                                                                  


Sabendo que as energias não renováveis são as grandes causadoras do passivo ambiental, verificamos que o Brasil consome 100 – 44,7 = 55,3% de energias não renováveis enquanto o mundo consome 100 – 13,3 = 86,7% e a China consome
100 – 5,6 = 94,4%. Consequentemente o passivo ambiental brasileiro causado pelo consumo de energia é muito menor que o mundial e o chinês.

Resumo: estamos muito bem, o que contraria os detratores da economia de nosso país.