O geógrafo britânico David Harvey está no
Brasil para um ciclo de conferências sobre o direito à cidade. Embora muito
negligenciado, o reconhecimento da importância desse
direito é fundamental para análises mais realistas da democracia face à dinâmica capitalista. Com essa observação, vai aí adaptação de um artigo de Harvey intitulado O direito à cidade:
Saber que tipo de cidade queremos é uma
questão que não pode ser dissociada de saber que tipo de vínculos sociais,
relacionamentos com a natureza, estilos de vida, tecnologias e valores
estéticos nós desejamos. O direito à cidade é muito mais que a liberdade
individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um direito de mudar a nós
mesmos, mudando a cidade. Além disso, é um direito coletivo, e não individual,
já que essa transformação depende do exercício de um poder coletivo para
remodelar os processos de urbanização. A liberdade de fazer e refazer as nossas
cidades, e a nós mesmos, é, a meu ver, um dos nossos direitos humanos mais
preciosos e ao mesmo tempo mais negligenciados.
A urbanização sempre foi um fenômeno de
classe, uma vez que o controle sobre o uso da sobreprodução sempre ficou
tipicamente nas mãos de poucos [pense, por exemplo, num senhor feudal].
Sob o capitalismo, emergiu uma conexão íntima entre o desenvolvimento do
sistema e a urbanização.
Como em todas as fases anteriores, a expansão
mais recente do processo de urbanização trouxe consigo mudanças incríveis no
estilo de vida. Mas a qualidade da vida nas cidades agora virou uma mercadoria,
num mundo onde o consumismo, o turismo e as indústrias culturais e do
conhecimento se tornaram aspectos importantes da economia urbana. É um mundo em que a ética neoliberal de
individualismo, acompanhada pela recusa de formas coletivas de ação política,
se torna o modelo para a socialização humana.
Em vista disso, precisamos de um maior
controle democrático sobre a produção e a utilização do lucro. E uma vez que o
processo urbano é um dos principais canais de uso desse dinheiro, criar uma
gestão democrática da sua aplicação constitui o direito à cidade. Ao longo de
toda a história do capitalismo, uma parte do lucro foi tributada, e em
fases social-democratas a proporção à disposição do Estado aumentou
significativamente. O projeto neoliberal dos últimos trinta anos caminhou para
privatizar esse controle.
No atual ponto da história, essa tem de ser
uma luta global, predominantemente contra o capital financeiro, pois essa é a
escala em que ocorrem hoje os processos de urbanização. Sem dúvida, a tarefa
política de organizar um tal confronto é difícil, se não desanimadora. Mas as
oportunidades são múltiplas, pois, como mostra esta breve história, as crises
eclodem repetidas vezes em torno da urbanização e a metrópole é hoje o ponto de
confronto – luta de classes — a respeito da acumulação de capital pela
desapropriação dos menos favorecidos e do tipo de desenvolvimento que procura
colonizar espaços para os ricos.
Um passo para a unificação dessas lutas é
adotar o direito à cidade, como slogan e como ideal político, precisamente
porque ele levanta a questão de quem comanda a relação entre a urbanização e o
sistema econômico. A democratização desse direito e a construção de um amplo
movimento social para fazer valer a sua vontade são imperativas para que os despossuídos
possam retomar o controle que por tanto tempo lhes foi negado e instituir novas
formas de urbanização.
* Texto adaptado. Publicado originalmente
na New Left Review 53, Set/Out, 2008. Tradução da Revista Piauí.
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