O biopoder (o poder sobre
os corpos) produz as disciplinas de normalização e determina as formas de subjetivação.
Já a sexopolítica vai além: os corpos e as identidades dos tidos como anormais
não são simplesmente efeitos dos discursos sobre o sexo, mas também potências
políticas.
Por oposição às políticas “feministas” ou
“homossexuais”, a política da multidão queer não repousa sobre uma
identidade natural (homem/mulher) nem sobre uma definição pelas práticas
(heterossexual/homossexual), mas sobre uma multiplicidade de corpos que se
levantam contra os regimes que os constroem como “normais” ou “anormais”.
Mas se as multidões queer são pós-feministas
não é porque desejam ou podem atuar sem o feminismo. Pelo contrário, elas são o
resultado de um confronto reflexivo do feminismo com as diferenças que o
feminismo apagou em proveito de um sujeito político “mulher” hegemônico e
heterocêntrico.
A política das multidões queer emerge de uma
posição crítica a respeito dos efeitos normalizantes e disciplinares de toda
formação identitária, de uma desontologização do sujeito da política das
identidades: não há uma base natural (“mulher”, “gay” etc.) que possa legitimar
a ação política. Não se pretende a liberação das mulheres da “dominação
masculina”, como queria o feminismo clássico, já que não se apoia sobre a
“diferença sexual”, sinônimo da principal clivagem da opressão (transcultural,
trans-histórica), que revelaria uma diferença de natureza e que deveria
estruturar a ação política. A noção de multidão queer se opõe
decididamente àquela de “diferença sexual”, tal como foi explorada tanto pelo
feminismo essencialista (de Irigaray a Cixous, passando por Kristeva) como
pelas variações estruturalistas e/ou lacanianas do discurso da psicanálise
(Roudinesco, Héritier, Théry...). Ela se opõe às políticas paritárias derivadas
de uma noção biológica da “mulher” ou da “diferença sexual”. Opõe-se às
políticas republicanas universalistas que concedem o “reconhecimento” e impõem
a “integração” das “diferenças” no seio da República. Não existe diferença
sexual, mas uma multidão de diferenças, uma transversalidade de relações de
poder, uma diversidade de potências de vida. Essas diferenças não são
“representáveis” porque são “monstruosas” e colocam em questão, por esse
motivo, os regimes de representação política, mas também os sistemas de
produção de saberes científicos dos “normais”.
Nesse sentido, as políticas das multidões queer se
opõem não somente às instituições políticas tradicionais, que se querem
soberanas e universalmente representativas, mas também às epistemologias
sexopolíticas straight, que dominam ainda a produção da ciência.
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Fonte:
PRECIADO, Beatriz. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”.
Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 312, janeiro-abril/2011.
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