quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

A potência política da multidão queer

O biopoder (o poder sobre os corpos) produz as disciplinas de normalização e determina as formas de subjetivação. Já a sexopolítica vai além: os corpos e as identidades dos tidos como anormais não são simplesmente efeitos dos discursos sobre o sexo, mas também potências políticas.
 
Por oposição às políticas “feministas” ou “homossexuais”, a política da multidão queer não repousa sobre uma identidade natural (homem/mulher) nem sobre uma definição pelas práticas (heterossexual/homossexual), mas sobre uma multiplicidade de corpos que se levantam contra os regimes que os constroem como “normais” ou “anormais”.
 
Mas se as multidões queer são pós-feministas não é porque desejam ou podem atuar sem o feminismo. Pelo contrário, elas são o resultado de um confronto reflexivo do feminismo com as diferenças que o feminismo apagou em proveito de um sujeito político “mulher” hegemônico e heterocêntrico.
 
A política das multidões queer emerge de uma posição crítica a respeito dos efeitos normalizantes e disciplinares de toda formação identitária, de uma desontologização do sujeito da política das identidades: não há uma base natural (“mulher”, “gay” etc.) que possa legitimar a ação política. Não se pretende a liberação das mulheres da “dominação masculina”, como queria o feminismo clássico, já que não se apoia sobre a “diferença sexual”, sinônimo da principal clivagem da opressão (transcultural, trans-histórica), que revelaria uma diferença de natureza e que deveria estruturar a ação política. A noção de multidão queer se opõe decididamente àquela de “diferença sexual”, tal como foi explorada tanto pelo feminismo essencialista (de Irigaray a Cixous, passando por Kristeva) como pelas variações estruturalistas e/ou lacanianas do discurso da psicanálise (Roudinesco, Héritier, Théry...). Ela se opõe às políticas paritárias derivadas de uma noção biológica da “mulher” ou da “diferença sexual”. Opõe-se às políticas republicanas universalistas que concedem o “reconhecimento” e impõem a “integração” das “diferenças” no seio da República. Não existe diferença sexual, mas uma multidão de diferenças, uma transversalidade de relações de poder, uma diversidade de potências de vida. Essas diferenças não são “representáveis” porque são “monstruosas” e colocam em questão, por esse motivo, os regimes de representação política, mas também os sistemas de produção de saberes científicos dos “normais”.
 
Nesse sentido, as políticas das multidões queer se opõem não somente às instituições políticas tradicionais, que se querem soberanas e universalmente representativas, mas também às epistemologias sexopolíticas straight, que dominam ainda a produção da ciência.
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Fonte: PRECIADO, Beatriz. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 312, janeiro-abril/2011.

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