domingo, 16 de março de 2014

Política, guerra no ar

A partir da sucessão de paradigmas epistemológicos sobre todo o conjunto de reflexões teóricas que se propõem a pensar a mediação entre agente social e sociedade,  observa-se claramente, ao longo da história da consagração de saberes, o paulatino reconhecimento de que o elemento poder está presente em todas as relações humanas em sociedade. É como se o poder fosse uma espécie de molécula fundamental inevitavelmente presente nas relações, fazendo parte daquela microfísica aludida por Michel Foucault, a microfísica do poder, que só vem sendo consistentemente enxergada com o olhar detido de reflexões acadêmicas funcionando como microscópio. A princípio, o poder é predominante e facilmente visto no âmbito da – a contrario sensu – macrofísica do poder, isto é, na arena política stricto sensu. Todavia, à luz desse reconhecimento de que há poder em todas as relações humanas interagindo em sociedade, é possível afirmar que a política também está presente em toda a teia social. Como o ar, invisível embora indispensável, seu oxigênio é o poder. 

As duas tradições epistemológicas que refletem dois tipos polares e antagônicos de produção de conhecimento são o objetivismo e a fenomenologia. Enquanto a perspectiva fenomenológica parte da experiência primeira do indivíduo, o objetivismo constrói as relações objetivas que estruturam as práticas individuais. O tipo de conhecimento objetivista, do qual são escolas o positivismo e o estruturalismo, se inspira em uma suposta neutralidade do cientificismo, forte legado do período iluminista; a fenomenologia se insurge contra o objetivismo ao considerar a influência da subjetividade na produção de saberes.

É com Pierre Bourdieu que essas duas correntes são ultrapassadas pela abordagem praxiológica. Com Bourdieu vemos que a sociedade global se estrutura em relações hierarquizadas em dupla dominação: enquanto discurso ideológico e enquanto categoria lógica que ordena a própria representação social (habitus). E toda escolha tende a reproduzir as relações de dominação. Essas relações se organizam em campos, isto é, espaços onde se manifestam relações de poder, o que implica em afirmar que eles se estruturam a partir da distribuição desigual de um quantum social que determina a posição que um agente específico ocupa em seu seio. Destarte, a partir da categoria "campo", verificamos o campo artístico, o campo científico, o campo econômico e o campo da política stricto sensu, entre outros, mas a característica comum a todos os campos é terem autonomia suficiente para se constituir sem, contudo, terem fronteiras impermeáveis. Pelo contrário, a sociedade é complexa e todos os campos interagem entre si.

Meu ponto é: todos os campos interagem entre si, mas, se o princípio de todos eles são relações de poder, o campo político está, na verdade, presente em absolutamente todos os outros em alguma medida. Porque a substância da política é o poder, então tudo é política.

As teorias feministas denunciaram muito bem isso: antes delas, argumentava-se que a política tinha seu espaço próprio, que era a esfera pública. Aí vieram as feministas e mostraram que a política está também dentro de casa, na esfera privada. Agora não podem mais dizer que a dona de casa mexendo panela, enquanto o "chefe de família" garante sua renda, não faz parte de um grande embate de poder.

Quando falamos de poder sempre falamos de política. Poder é a capacidade de imposição da própria vontade a outrem (Weber). E isso é o que move a política. Por mais que qualifiquemos os poderes (como poder econômico, familiar, simbólico etc.), em primeiro lugar, só por ser poder, é um elemento político – nesse sentido, existe uma política lato sensu, essa que está em tudo, e uma política stricto sensu, em que o poder aparece concentrado e escancarado no campo político propriamente dito.

Desse modo, cai por terra uma leitura mais estreita de Marx considerando sempre o poder em uma posição secundária da economia.

Na aula de 7 de janeiro de 1976, no Collège de France, Foucault empreende uma contundente análise não econômica do poder, assumindo o embate entre os tipos de saber como ponto de partida. Pela crítica do discurso científico, a epistemologia revela uma luta, um embate de forças na construção do conhecimento. Segundo Foucault, é possível analisar o poder graças à batalha dos "saberes sujeitados" contra os efeitos do poder do discurso científico. A genealogia é uma tática de batalha para reconstituir o projeto de conjunto do conhecimento, fazendo intervir, a partir das discursividades, os saberes dessujeitados que daí se desprendem.

Daí, Foucault propõe a hipótese de que o poder não se dá, nem se troca, nem se retoma, mas se exerce e só existe em ato. Não é primeiramente manutenção e recondução das relações econômicas, mas, em si mesmo, primariamente, uma relação de força. O poder é essencialmente o que reprime. Em segundo lugar, em sendo o poder relação de força, em vez de analisá-lo em termos de cessão, contrato, alienação ou mesmo em termos funcionais de recondução das relações de produção, deve ser analisado antes e acima de tudo em termos de combate, de enfrentamento ou de guerra. E, invertendo-se a proposição de Clausewitz, finalmente vemos a política como a guerra continuada por outros meios. O poder político (o poder da política stricto sensu), nessa hipótese, teria como função reinserir perpetuamente essa relação de força mediante uma espécie de guerra silenciosa e de reinseri-la nas instituições, nas desigualdades econômicas, na linguagem e até nos corpos de uns e de outros.

Desse modo, deixamos o esquema jurídico de análise de poder, isto é, um esquema contrato-opressão, pelo qual o legítimo se opõe ao ilegítimo, para visualizar o esquema guerra-repressão, ou dominação-repressão, no qual a oposição pertinente é entre luta e submissão. Enfim, sob o poder político, o que paira e o que funciona é essencialmente e acima de tudo uma relação belicosa. Só porque a maioria das pessoas se acostuma com essa violência, de certo modo, silenciosa e invisível, não significa que ela não exista e, muito menos, que não possa ser vista.

E, assim, a violência não explícita, institucionalizada pelos aparatos de civilização, anestesia consciências. Mas isso faz parte da guerra. Essa guerra se chama política e está em tudo. Como o ar.

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