sábado, 7 de dezembro de 2013

Puta é elogio

Não existe, em todo o vernáculo, palavra a que tradicionalmente se associe um sentido tão negativo como carregam os adjetivos que condenam a liberdade sexual das mulheres: puta, vadia, piranha, vaca etc. Para os homens, mesmo o pior insulto não se equipara ao grau de baixeza atribuído à qualidade da mulher que não se intimida com as restrições morais sobre seu comportamento sexual. Aliás, talvez o pior xingamento que se possa fazer a um homem é "filho da puta", reiterando e fortalecendo o conceito de que ser puta é tão ruim que parece até a causa de todos os males, porquanto é ela quem dá à luz a todos os filhos da puta do mundo. Esse xingamento é preconceituoso demais, culpabiliza a mulher meio subliminarmente e está terminantemente abolido do meu vocabulário.

É claro que existe a puta de fato, isto é, a prostituta, que trabalha fazendo sexo. É um trabalho e, portanto, merece ser contemplado por todos os direitos trabalhistas. Como não tenho paciência para já responder de antemão aos contra-argumentos dos conservadores, aqui está um artigo do Jean Wyllys sobre isso. Embora eu tenha ressalvas quanto a esse parlamentar (porque é do PSoL), ele é autor do PL Gabriela Leite, que tem todo o meu respeito e entusiasmo.

Para além dessa discussão sobre o significado profissional, a alcunha de puta continua sendo socialmente considerada uma ofensa gravíssima. Entretanto, para uma mulher bem resolvida em sua sexualidade, isso parece muito antigo ou ingênuo; ser chamada de puta é tão risível quanto, por exemplo, ser chamada de "boboca". Ou, melhor: soa até como elogio, sinal de esclarecimento e liberdade. Daí o lema da Marcha das Vadias: "se ser livre é ser vadia, somos todas vadias". 

Com efeito, ser uma puta mulher bem resolvida não tem preço, mas também não dá para ignorar as injustas implicações em jogo e é preciso lutar para eliminá-las. Até quando vão reproduzir o ódio às mulheres? (Alô, meninas! Como disse Simone de Beauvoir, o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos). Repensar o sentido das palavras que correspondem ao mesmo sentido de puta e perceber o grau de moralismo opressor que ainda possuem é uma maneira de se libertar individualmente, mas é importante politicamente identificar o background de patriarcalismo, machismo e violência de gênero que se arrasta no tempo e até hoje recai como um fardo hiperpesado a quem nasce como fêmea da espécie humana. A própria Beauvoir dá uma mostra desse histórico:

"Organizando a opressão da mulher, os legisladores têm medo dela. Das virtudes ambivalentes de que ela se revestia retém-se principalmente o aspecto nefasto: de sagrada, ela se torna impura. Eva entregue a Adão para ser sua companheira perde o gênero humano; quando querem vingar-se dos homens, os deuses pagãos inventam a mulher, e é a primeira dessas criaturas, Pandora, que desencadeia todos os males de que sofre a humanidade. O Outro é a passividade em face da atividade, a diversidade que resiste à ordem. A mulher é, assim, votada ao Mal. 'Há um princípio bom que criou a ordem, a luz, o homem; e um princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher', diz Pitágoras. As leis de Manu definem-na como um ser vil que convém manter escravizado. O Levítico assimila-a aos animais de carga que o patriarca possui. As leis de Sólon não lhe conferem direito. O código romano coloca-a sob tutela e proclama-lhe a 'imbecilidade'. O direito canônico considera-a 'porta do Diabo'. O Corão trata-a com o mais absoluto desprezo."
(BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. São Paulo: Círculo do Livro, [ano desconhecido], p. 109).


Por tudo isso, com consciência e luta por igualdade, há de chegar o dia em que (tentar) jogar pedras em forma de palavras e estigmas vai ser ridículo e anacrônico não apenas de um ponto de vista individual, mas, oxalá, geral.


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