Não existe, em todo o vernáculo, palavra a que
tradicionalmente se associe um sentido tão negativo como carregam os adjetivos
que condenam a liberdade sexual das mulheres: puta, vadia, piranha, vaca etc.
Para os homens, mesmo o pior insulto não se equipara ao grau de baixeza
atribuído à qualidade da mulher que não se intimida com as restrições morais
sobre seu comportamento sexual. Aliás, talvez o pior xingamento que se possa
fazer a um homem é "filho da puta", reiterando e fortalecendo o
conceito de que ser puta é tão ruim que parece até a causa de todos os males,
porquanto é ela quem dá à luz a todos os filhos da puta do mundo. Esse
xingamento é preconceituoso demais, culpabiliza a mulher meio subliminarmente e
está terminantemente abolido do meu vocabulário.
É claro que existe a puta de fato, isto é, a
prostituta, que trabalha fazendo sexo. É um trabalho e, portanto, merece ser
contemplado por todos os direitos trabalhistas. Como não tenho paciência para
já responder de antemão aos contra-argumentos dos conservadores, aqui está um artigo do Jean Wyllys sobre isso. Embora eu
tenha ressalvas quanto a esse parlamentar (porque é do PSoL), ele é autor do PL
Gabriela Leite, que tem todo o meu respeito e entusiasmo.
Para além dessa discussão sobre o significado
profissional, a alcunha de puta continua sendo socialmente considerada uma
ofensa gravíssima. Entretanto, para uma mulher bem resolvida em sua
sexualidade, isso parece muito antigo ou ingênuo; ser chamada de puta é tão
risível quanto, por exemplo, ser chamada de "boboca". Ou, melhor: soa
até como elogio, sinal de esclarecimento e liberdade. Daí o lema da Marcha das
Vadias: "se ser livre é ser vadia, somos todas vadias".
Com efeito, ser uma puta mulher bem resolvida não tem
preço, mas também não dá para ignorar as injustas implicações em jogo e é
preciso lutar para eliminá-las. Até quando vão reproduzir o ódio às mulheres? (Alô, meninas! Como disse Simone de Beauvoir, o opressor não seria tão forte se não
tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos). Repensar o sentido das
palavras que correspondem ao mesmo sentido de puta e perceber o grau de
moralismo opressor que ainda possuem é uma maneira de se libertar
individualmente, mas é importante politicamente identificar o background de
patriarcalismo, machismo e violência de gênero que se arrasta no tempo e até
hoje recai como um fardo hiperpesado a quem nasce como fêmea da espécie humana. A própria
Beauvoir dá uma mostra desse histórico:
"Organizando a opressão da mulher, os
legisladores têm medo dela. Das virtudes ambivalentes de que ela se revestia
retém-se principalmente o aspecto nefasto: de sagrada, ela se torna impura. Eva
entregue a Adão para ser sua companheira perde o gênero humano; quando querem
vingar-se dos homens, os deuses pagãos inventam a mulher, e é a primeira dessas
criaturas, Pandora, que desencadeia todos os males de que sofre a humanidade. O
Outro é a passividade em face da atividade, a diversidade que resiste à ordem.
A mulher é, assim, votada ao Mal. 'Há um princípio bom que criou a ordem, a
luz, o homem; e um princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher', diz
Pitágoras. As leis de Manu definem-na como um ser vil que convém manter
escravizado. O Levítico assimila-a aos animais de carga que o patriarca possui.
As leis de Sólon não lhe conferem direito. O código romano coloca-a sob tutela
e proclama-lhe a 'imbecilidade'. O direito canônico considera-a 'porta do
Diabo'. O Corão trata-a com o mais absoluto desprezo."
(BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. São
Paulo: Círculo do Livro, [ano desconhecido], p. 109).
Por tudo isso, com
consciência e luta por igualdade, há de chegar o dia em que (tentar) jogar
pedras em forma de palavras e estigmas vai ser ridículo e anacrônico não apenas de um ponto de vista individual,
mas, oxalá, geral.
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