quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Do padrão do gosto (para além de Hume): a ideologia


Artaud escreveu que a arte não é a representação da vida, mas a vida é a representação de um princípio transcendente com o qual a arte nos põe (novamente) em contato. Se entendermos as expressões “representação da vida” e “princípio transcendente” não em termos conceitualmente rigorosos, mas lhes concedendo certa dose de licença poética, poderíamos reescrever a sentença no sentido de defender a seguinte ideia, de inspiração lukácsiana: a grande obra de arte é aquela que melhor reproduz, ou expressa, o essencial da realidade, que envolve as aparências mas não se limita a elas, dando conta igualmente do jogo de potências latentes, não manifesto, na imediaticidade, na cotidianidade, na forma de um realismo não naturalista, dado que a realidade engloba aparência e essência em sua relação dialética.

A grande arte, assim, seria a depuração do inessencial, do acessório, de modo a concentrar nossa atenção e sensibilidade naquilo que, no próprio cerne da imediaticidade, a transcende.
Assim, poderíamos parafrasear Artaud e afirmar que a arte não é a representação da vida em sua cotidianidade, em sua imediaticidade, mas a vida cotidiana é que favorece uma representação superficial da densa, rica e complexa dinâmica da realidade, com as quais a arte nos põe novamente em contato, de forma sensório-cognoscente.

A grande mídia comercial, em geral, faz o contrário disso. E faz mais, pois, seja no terreno da arte, seja no da informação, admitindo que a aptidão avaliativa das pessoas não nasce com elas, ela não só fornece o repertório da maior parte daquilo que será avaliado, mas os próprios termos da avaliação, a partir de critérios ideológicos (e contábeis) não explicitados. Considerando, ademais, que sua ação não se dá somente no nível intelectivo, mas também, e talvez principalmente, no afetivo, ela forma os gostos, e os gostos constituem a base sensível da ideologia, sem a qual ela não “cola”. 
*
(SCHNEIDER, Marco. A captura do gosto como inclusão social negativa: por uma atualização crítica da ética utilitarista. http://www.sesc.com.br/wps/wcm/connect/5254eb81-39a4-4a4b-bb92-6710645bf424/17.pdf?MOD=AJPERES&CACHEID=5254eb81-39a4-4a4b-bb92-6710645bf424).

Nenhum comentário:

Postar um comentário