segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Exatas e humanas: muito mais que culturas distintas

Este ano assisti a uma palestra em que se sustentava o seguinte: de quem tem formação na área das ciências humanas não se pode exigir conhecimento das ciências exatas e vice-versa. O argumento é que os dois campos – humanas e exatas – constituem culturas distintas com igual valor, não cabendo a avaliação de que uma é mais importante que a outra.

Muito errado!

Uma formação humanista básica é absolutamente necessária a qualquer pessoa, ainda que se trilhe o caminho profissional da ciência e tecnologia. Um conhecimento de humanas jamais é inútil; incorpora-se à visão de mundo do sujeito de conhecimento, situando-o melhor no tempo, no espaço, na vida. Torna a pessoa mais consciente da realidade que a cerca, que é imediatamente feita de relações humanas. Você pode não entender nada de logaritmos, mas a ausência de um juízo minimamente esclarecido acerca do funcionamento da política e da economia, por exemplo, te desconecta da experiência essencialmente humana. E por trás de toda prática político-econômica – ou, mais amplamente, de toda relação interpessoal e social – há uma concepção sobre o ser humano. Há valores. Ao fim e ao cabo, as reflexões humanistas abordam questões existenciais (quem sou, onde estou, para onde vou e como vou). 

É muito importante compreender a natureza, saber que somos animais da espécie homo sapiens vivendo no planeta Terra, que é regido por leis da física descritas por equações matemáticas. Mas, sem a noção histórica de como a humanidade se conduz ao longo do tempo, sem reflexões filosóficas, das letras, das artes, das ciências sociais e da psicologia, você pode se achar o crânio das galáxias, mas é, na verdade, de uma insensibilidade vulgar e tão grande que quase te faz ser confundido com uma máquina. Só que não. Então se revela nítido o desequibílbrio provocado pela disfunção daquelas mentes que, sem desenvolver sensibilidade, não se treinaram a olhar para entender a sociedade e o próximo – e, com esse movimento, chegar a desenvolver a capacidade de obtenção de autoconhecimento. 

Isso significa que a dedicação a estudos em ciências humanas, ainda que básicos e gerais, diz respeito à própria emancipação humana, porquanto é impossível ser livre sem acessar às maturações que esse mundo de saber oferece. Ignorá-lo é manter-se em uma triste espécie de menoridade, uma tacanhez que em nada contribui ao encontro do bem-estar, da paz e da felicidade [1].

Não por acaso, a ditadura militar inibia a produção e o desenvolvimento das ciências humanas com muito terror e pesada repressão. O interesse era a máxima expansão econômica em menor tempo possível, sem espaço para a emancipação popular. E, na lógica de que o crescimento econômico depende quase que exclusivamente do desenvolvimento científico e tecnológico, como que colocando antolhos em cidadãos, o (des)governo militar foi bem sucedido ao praticamente negar aos brasileiros um ensino de formação mais substancial – ou, como dizem, "para a vida". Continuamos pagando por isso.

A democracia só pode prosperar se houver um esforço de universalização do mínimo existencial e da promoção de massa crítica. O senso crítico sobre a vida em sociedade, oposto do senso comum, é produto natural – embora não necessário – do pensamento bem introduzido às humanidades. É pensamento que nos leva a ler nas entrelinhas, ter sensibilidade para enxergar caminhos quando, na realidade complexa da vida, não há fórmulas capazes de atestar a separação das respostas certas das erradas, porque simplesmente nem sempre há certo e errado.

Como é baixo o retorno econômico do investimento em ciências humanas, a brutalidade da lógica da ditadura do capital no âmbito das "humanas" se faz superpresente hoje em dia. A ideia do capitalismo cognitivo já denuncia o estrago que o sistema econômico vem produzindo em relação às atividades artísticas e intelectuais. A necessidade de desenvolvimento econômico também é a razão para que o governo brasileiro promova programas como o Ciência Sem Fronteiras em assumida sanha para formar engenheiros sem maiores preocupações com o fortalecimento da área de humanas, o que tem tudo para ser desastroso aos rumos do país, país que é feito de gente. No entanto, parece que insistem em inverter as ideias: não querem que as tecnologias se humanizem, querem transformar pessoas em robozinhos.

Enfim, além de culturas distintas, é preciso reconhecer que as ciências humanas são mais importantes do que as exatas, sim. Não dão dinheiro, mas promovem lucidez, sabedoria e crítica. Enaltecem o ser humano e iluminam suas escolhas. Portanto, é fundamental a todos um currículo básico de ciências humanas, com a apresentação consistente de um repertório de conhecimentos que constituem o núcleo duro dessas ciências, sob risco de a humanidade, refém do "sistema", nunca se transformar em verdadeira senhora de seu destino.

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[1] Não há apenas um caminho para se chegar ao autoconhecimento, mas, sem dúvida, entender o mundo ao redor pode ser um deles. Segundo a filosofia oriental, é possível conhecer-se e atingir um estado de realização pessoal sem olhar para fora, mas exclusivamente para dentro. Daí as tradicionais meditações como técnicas de alcance de lucidez interior. Ocorre que a vida em sociedade requer mais do que os trabalhos autocentrados do isolamento individual. Como inevitavelmente estamos vinculados à sociedade, é preciso olhar para ela, procurar entendê-la e dela participar. Nesse sentido, olhar para fora é, de qualquer maneira, necessário ao bem viver.

Um comentário:

  1. De fato as ciências humanas constituem a base de formação. Quem não sabe ler e interpretar o que está lendo, não conseguirá aprender mais nada. Quem não tem visão de mundo, não é cidadão pleno. Entretanto, não é preciso pesquisar muito para verificar que as grandes deficiências em nosso país se encontra exatamente em exatas. Cada vez mais se formam profissionais de humanas, ampliando o número de advogados, pedagogos e até filósofos, sem que isso represente uma melhoria em nosso judiciário ou em nossa sociedade. Por outro lado, importamos engenheiros especializados, físicos e matemáticos, pois nosso país, que deseja se consolidar com um dos grandes no mundo, ao contrário de Japão, Coréia do Sul e outros, não valoriza a área de exatas e o resultado é uma defasagem de profissionais com esse perfil, absolutamente imprescindíveis para o nosso desenvolvimento científico, tecnológico e econômico.

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