quinta-feira, 1 de agosto de 2013

É de estratégia que precisamos

 
Em matéria de política, não basta desenvolver o pensamento lendo milhares de livros e debatendo fatos e ideias. É fundamental, também, admitir que política é uma espécie de jogo de xadrez muito peculiar em que é preciso ter frieza e estratégia para a submissão a certos meios mirando um fim, como nos ensinava há 500 anos o grande Maquiavel, verdadeiro patrono da ciência política.
 
É muita ingenuidade pretender ser puritano na política. Sem ceder a interesses alheios — que, inclusive, fazem parte da democracia — como governar? No máximo, daria para governar autoritariamente. Se política se faz no hoje olhando para o amanhã, não adianta: é preciso trabalhar com o que se tem. O PMDB não é o maior partido brasileiro à toa, isso é um reflexo do baixo grau de consciência política da população brasileira. É real. É o que temos para hoje. Acreditar que, de uma hora para outra, essa consciência vai desabrochar e se expandir é mera ilusão. Portanto, por mais que a esquerda represente o melhor ao povo, ela não vai conseguir fazer uma aliança com o povo enquanto não respeitar o seu processo de amadurecimento.  
 
Não que seja uma interpretação soberba, mas, se fosse tão óbvio construir e aderir a ideias progressistas, os partidos e os foros de debate e reflexão de esquerda contariam com a presença maciça do proletariado. Todavia, o que vemos é que a esquerda ainda se sustenta predominantemente graças a uma concentração de intelectuais de ciências humanas, e não simplesmente em face dos problemas do capitalismo: muita gente os enxerga, mas, ainda assim, anseia por um capitalismo melhor! Tristes tempos em que é tão descarada a rudimentariedade do grau de consciência política médio da população.
 
No Brasil, a atual oposição de esquerda, desprezando a oportunidade de contar com um partido de esquerda à frente do executivo federal para engrossar o bloco de esquerda no governo, desperdiçam a chance de fazer política com inteligência tática. Seria muito mais fácil aprofundar aos poucos um projeto de esquerda do que querer concretizar para já um projeto idealizado. Quem ganha com o racha? A direita. Há inúmeros exemplos disso, a ponto de, retoricamente, descaracterizarem o PT como sendo de esquerda. É lógico: enquanto a esquerda se pulveriza, com críticas à crítica da crítica e mimimis sem fim, a direita aproveita. Críticas construtivas são sempre bem-vindas; enfraquecimento, não.
 
Com essas considerações preambulares, e relembrando o que já disse aqui, transcrevo abaixo um maravilhoso artigo de Wladimir Pomar:
 
Notas sobre estratégia e socialismo

Olhando o mundo atual em perspectiva, não é difícil constatar que o capitalismo gerou uma abundância produtiva imensa e, ao mesmo tempo, criou um absurdo civilizacional ao manter bilhões de pessoas sem acesso a tal abundância. E que, quanto mais as grandes corporações monopolizam a economia, mesmo dos países pouco desenvolvidos, mais elas colocam em risco o próprio desenvolvimento burguês. Isto é, emparedam as empresas capitalistas não corporativas, ameaçam a já limitada democracia econômica da burguesia, comprimem a democracia social e se confrontam com a necessidade de liquidar a própria democracia política burguesa.
 
São essas discrepâncias que abrem a possibilidade de apresentar, no Brasil, um programa ou estratégia de transição socialista, que preveja a continuidade de empresas privadas como condição para o desenvolvimento das forças produtivas sociais. Não será mais o espírito anticapitalista, de 1980, nem o espírito temeroso da Carta aos Brasileiros da campanha presidencial do PT, em 2002, com sua tática ambígua de continuidade do neoliberalismo, que alguns pretenderam manter como estratégia.
 
Nos anos 1980, o PT reiterou uma ideia estratégica do pensamento socialista e comunista. Isto é, que a emancipação da classe trabalhadora será obra da própria classe trabalhadora. Por outro lado, confundiu a contradição fundamental da sociedade capitalista, entre capital e trabalho, com a contradição principal da sociedade brasileira naquele momento histórico. A contradição fundamental só se transforma na contradição principal quando o capitalismo concentrar e centralizar, em um pequeno número de burgueses, a esmagadora maioria da massa de meios de produção. Em sociedades como a brasileira, em que o capitalismo ainda não fechara as portas para diversos tipos de desenvolvimento capitalista, a contradição fundamental era a que separava o capital do trabalho, mas a principal contradição histórica era outra.
 
Por um lado, o PT demonstrou radicalidade em reiterar que o capitalismo não muda sem a luta pelo socialismo. Por outro, foi incapaz de distinguir a contradição principal da sociedade brasileira da contradição fundamental entre capital e trabalho, e ficou devendo um programa ou uma estratégia que respondesse à situação real do Brasil, em que ainda havia espaço para uma série considerável de reformas de caráter democrático-burguês. E, também, para a introdução de reformas de caráter socialista, pelas dificuldades da própria burguesia nacional em cumprir o que deveria ser seu papel histórico.
 
Não é por outro motivo que parece haver, no Brasil, concordância em instituir medidas que assegurem o caráter público e universal à educação e à saúde; implantem o imposto sobre grandes fortunas; taxem fortemente os lucros das empresas monopolistas; realizem a reforma agrária, fortaleçam a agricultura familiar e criem uma agroindústria ecológica; submetam o sistema bancário ao interesse coletivo; assegurem o controle público das ações do Estado; descriminalizem o aborto; democratizem os meios de comunicação em todos os níveis; deem fim à concentração fundiária urbana; garantam o domínio do país sobre seus recursos hídricos, florestais, biológicos e minerais; intensifiquem os trabalhos de unificação política e econômica dos países latino-americanos; protejam os biomas ameaçados pelos interesses econômicos; mudem radicalmente o modelo de transporte público; combatam a corrupção pública e privada; impeçam o financiamento privado das eleições; criem mecanismos democráticos de controle externo dos poderes públicos; consolidem a subordinação do aparato militar ao poder civil; e imponham a formação democrática a todas as instituições militares e policiais. Como se nota, todas de natureza democrático-burguesa.
 
Essas medidas podem abrir campo para o desenvolvimento posterior do socialismo, mas não representam mudanças socialistas. Estas só ocorrem quando a maior parte da propriedade privada dos meios de produção, circulação e distribuição se tornou propriedade social. E quando o Estado se tornou um instrumento de poder a serviço principalmente da classe trabalhadoras e das demais camadas populares da população, marcando uma diferença de qualidade entre o capitalismo e o socialismo. Mas essa diferença de qualidade entre capitalismo e socialismo está longe de ser consensual dentro da esquerda.
 
Alguns setores de esquerda temem ou não querem realizar mudanças que reforcem essa diferença qualitativa. Para eles, basta continuar realizando maquiagens de reformas e pinturas das favelas, sem ouvir o que realmente suas populações precisam e querem. Outros setores, por sua vez, confundem o desenvolvimento capitalista com o desenvolvimento socialista e acreditam que já constroem o socialismo no Brasil. Baseiam-se no fato de a burguesia reacionária considerar comunista qualquer medida democrática, e de a burguesia conservadora considerar socialista qualquer programa de cunho social.
 
Em sentido oposto, há setores da esquerda que consideram que um desenvolvimento de caráter socialista terá necessariamente o mesmo caráter de destruição ambiental do capitalismo, e buscam uma terceira via de não crescimento e não desenvolvimento, cujo resultado mais viável deve ser uma estagnação mais profunda do que a do período de predomínio neoliberal. E há setores com a ideia firme de que socialismo é a transformação plena da propriedade dos meios de produção em propriedade social. Não acham necessário considerar o estágio de desenvolvimento desses meios de produção. Portanto, para ser socialista, qualquer revolução social no Brasil teria que realizar uma construção socialista de tipo soviético, apenas expurgada do totalitarismo stalinista.
 
A sugestão de que se possa diferenciar o desenvolvimento capitalista, mesmo que contenha enclaves socialistas, do desenvolvimento socialista, mesmo que contenha enclaves capitalistas, não faz parte das considerações de grande parte da esquerda brasileira. Apesar disso, nas atuais condições econômicas, sociais e políticas do Brasil, há uma real possibilidade de que ambos os caminhos possam ser trilhados. Eles podem mesmo, momentaneamente, parecer de natureza idêntica. Porém, da mesma forma que na bifurcação das espécies, num determinado estágio de sua evolução, um dos caminhos subordinará o outro, que perecerá.
 
O que exige, da esquerda, em especial da que dirige o governo, uma visão clara da possibilidade de transformar o caminho de desenvolvimento capitalista, atualmente predominante, em caminho de desenvolvimento socialista. No estágio de desenvolvimento das forças produtivas no Brasil, o caminho socialista terá que conviver com uma proporção de enclaves capitalistas que contribuam para completar aquele desenvolvimento. Se as forças de esquerda se limitarem a reiterar que um governo dirigido por elas tem como objetivo transformar o Brasil num país de classe média, elas na prática ficarão nos limites da suposta revolução democrática e nos limites do desenvolvimento capitalista. E enfrentarão crescentes manifestações de insatisfação popular. Para transformar as lutas sociais em lutas por um desenvolvimento socialista, além de radicalizar as reivindicações democrático-burguesas consensuais, será necessário incrementar os enclaves socialistas na economia, nas condições sociais e no poder político. E transformá-las em predominantes.
 

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