sábado, 17 de agosto de 2013

Intelectual quem? – a lição de Edward Said

Um dos livros que mais amo é o "Representações do intelectual", de Edward W. Said. De leitura leve –trata-se, na verdade, de uma compilação de seis conferências transmitidas pela BBC, as Conferências Reith –, contém mensagem da mais alta importância nestes tempos em que se atribui tanta autoridade aos ditos "especialistas" e "formadores de opinião" : o que é ser intelectual?

De cara, antecipo que não é para qualquer um. Pensarão: "claro, é necessário estudar muito". Não, não foi isso que quis dizer. Há essa leitura tradicional da classe intelectual como sendo formada por professores, clérigos, advogados, comunicadores, administradores etc. que, geração após geração, continuam a fazer a mesma coisa e, assim, como 2 e 2 são 4, os estudiosos acabam se reputando membros da intelectualidade mundial só pelo conhecimento que adquiriram. Mas eu havia dito que "não é para qualquer um", né? Pois então, explico. Para mim, não desce essa representação do intelectual como qualquer erudito beletrista blasé. Seria muito fácil se fosse só isso, mas a classificação requer características que vão muito além da pose. 

Said vai ao ponto: intelectual que é intelectual tem que falar a verdade ao poder. É aquele indivíduo ríspido, eloquente, fantasticamente corajoso e revoltado, para quem nenhum poder do mundo é demasiado grande e imponente para ser criticado e questionado de forma incisiva. Intelectual é quem enxerga as verdadeiras injustiças e problemas do mundo e, por isso mesmo, acaba se vendo à parte, até como um "exilado" ou um náufrago que aprende a viver com a terra, mas não nela. Não responde à lógica do convencional. Não pode ser facilmente cooptado por governos ou corporações e sua raison d'etre é representar todas as pessoas e todos os problemas que são sistematicamente esquecidos ou varridos para debaixo do tapete. Assim, o intelectual age com base em princípios universais: que todos os seres humanos têm direito de contar com padrões de comportamento decentes quanto à liberdade e à justiça da parte dos poderes ou nações do mundo, e que as violações deliberadas ou inadvertidas desses padrões têm de ser corajosamente denunciadas e combatidas. O importante é causar embaraço, ser do contra e até mesmo desagradável. O objetivo da atividade intelectual é promover a liberdade humana e o conhecimento.

As representações intelectuais são dependentes de um estado de consciência que é cética, comprometida e incansavelmente devotada à investigação racional e ao juízo moral; e isso expõe o indivíduo intelectual e o coloca em risco. Saber como usar bem a língua e saber quando intervir por meio dela são duas características essenciais da ação intelectual.

Não há dúvida de que o intelectual deve se alinhar aos fracos e aos que não têm representação. É alguém que empenha todo o seu ser no senso crítico, na recusa em aceitar fórmulas fáceis ou clichês prontos, ou confirmações afáveis, sempre tão conciliadoras sobre o que os poderosos ou convencionais têm a dizer e sobre o que fazem. Não apenas relutando de modo passivo, mas desejando ativamente dizer isso em público. O estado de alerta é constante, de disposição perpétua para não permitir que meias verdades ou ideias preconcebidas norteiem as pessoas. A tarefa do intelectual é universalizar de forma explícita os conflitos e as crises, dar maior alcance humano à dor de um determinado povo ou nação, associar essa experiência ao sofrimento de outros. Relacionar esses horrores a aflições semelhantes de outros povos, em prevenção, para evitar que uma lição sobre a opressão aprendida em um determinado lugar seja esquecida ou violada em outra época ou lugar.

O intelectual deve ser alguém que, ao se considerar membro pensante e preocupado de uma sociedade, se empenha em levantar questões morais no âmago de qualquer atividade, por mais técnica e profissionalizada que seja. E falar a verdade ao poder não é idealismo panglossiano: é pensar cuidadosamente as alternativas, escolher a certa e então representá-la de maneira inteligente, a partir da qual possa fazer o maior bem e causar a mudança correta.

(Fica a dica).

Um comentário:

  1. Maravilhosa e brilhante!
    É sempre uma experiência intergaláctica passar por aqui, e a dica foi aceita com sucesso :)

    Fortalecendo uma reflexão latente em mim: o poder pela concessão da liberdade

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