sexta-feira, 26 de julho de 2013

Há saída?

"De quantos não é
O sonho de não sonhar
Pra poder fugir
De quantos não é
O sonho de desenhar
Pra fazer surgir
Traçar porta e maçaneta no ar
E sair."


Se não concordo com o sistema capitalista, posso viver sem ele? 

Se não concordo com a economia monetária, conseguiria viver de escambo, por exemplo? 

No meu país, preciso ganhar bem acima da média da população para conseguir ter acesso a serviços básicos (com qualidade razoável), como educação e saúde. Devo me curvar à lógica imoral da extração de mais-valia para obter esse básico? Há saída?

Capitalismo não é liberdade e nem democracia: é a ditadura do capital. E, como toda ditadura, temos dois lados em choque: o do opressor e o do oprimido.

Há quem não enxergue a realidade (a maioria). Há quem a enxergue e escolha o lado opressor, ativa ou passivamente. Eu a enxergo, mas, comprimida por essa laranja mecânica, já me vejo oprimida e procuro me defender para manter um padrão de vida médio sem ter que fazer o trabalho sujo, ou seja, aquele no qual efetivamente se baseia todo o sistema capitalista, traduzido no modo de produção caracterizado pela extração da mais-valia para efeito de produção e reprodução do capital em escala sempre crescente. 

Quero moradia digna, alimentação adequada, saúde, educação/cultura e lazer.  Por isso, debaixo da ditadura do capital, o serviço público se apresenta, a princípio, como uma alternativa paliativa de trabalho para quem, por uma questão moral, não aguentaria se "prostituir", se corromper para ser mais uma pessoa usada à reiteração da injustiça do capitalismo só para ganhar dinheiro em troca e, assim, garantir uma medíocre liberdade existencial. Enquanto eu puder me defender dos tentáculos do sistema, não me dobro. Foi por pura estratégia de defesa ideologicamente orientada que, há três anos, resolvi trabalhar na administração pública. De alguma maneira, é confortante pensar que até que venho me saindo o melhor que posso diante do comprometido contexto, mas isso está muito longe de ser a situação ideal.

Mais do que contaminada pela lógica fundamental do sistema, a máquina estatal serve a ele, ora mais, ora menos, mas sempre. O caso das agências reguladoras brasileiras é estarrecedor. Desde o princípio, criadas no governo neoliberal de FHC, são completamente capturadas, é muito triste. Como trabalhei na Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, sou testemunha e assino embaixo de tudo o que se denuncia no artigo abaixo. E a pergunta reverbera: há saída?

Atuação frouxa e perniciosa da ANS
por Lígia Bahia e Mário Scheffer, na Folha de S. Paulo
25/07/2013

No jargão dos planos de saúde, sinistro é a perda financeira a cada demanda de um cliente doente. Já a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) foi tomada pelo sinistro no sentido popular do termo – ou seja, aquilo que é pernicioso.
Dois ex-executivos de planos de saúde –um serviu à maior operadora do país e outro, à empresa líder no Nordeste– acabam de ser nomeados diretores da ANS.
Desde sua criação, há 13 anos, a agência foi capturada pelo mercado que ela deveria fiscalizar. As medidas sugeridas para coibir o conflito de interesses na ANS –frise-se, um órgão público sustentado com recursos públicos– sempre foram contestadas sob o argumento de que tais pessoas “entendem do setor”.
Assim, a agência instalou em suas entranhas uma porta giratória, engrenagem que destina cargos a ex-funcionários de operadoras que depois retornam ao setor privado.
A atuação frouxa da ANS, baseada no lucro máximo e na responsabilidade mínima das operadoras, tem a ver com essa contaminação. Impunes e protegidos pela fiscalização leniente, os planos de saúde ao fim restringem atendimentos e entregam emergências lotadas e filas de espera para consultas, exames e cirurgias.
As empresas deixaram de vender planos individuais, pois têm o aval da ANS para comercializar planos coletivos a partir de duas pessoas, com imposição de reajustes abusivos e rescisão unilateral de contrato sempre que os usuários passam a ter problemas de saúde dispendiosos. Sob o olhar complacente da ANS, dão calote no SUS, pois não fazem o ressarcimento quando seus clientes são atendidos em hospitais públicos.
Os planos de saúde doam recursos para candidatos em tempo de eleição que, depois de eleitos, devolvem a mão amiga com favores e cargos. Há coincidências que merecem explicação.
Em 2010, as operadoras ajudaram na eleição de 38 deputados federais, três senadores, além de quatro governadores e da própria presidente da República. Da empresa que doou legalmente R$ 1 milhão para a campanha de Dilma Rousseff, saiu o nome que presidiu a ANS até 2012.
O plano de saúde que doou R$ 100 mil à campanha de um aliado –o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral– emplacou um diretor da agência que, aliás, acaba de ser reconduzido ao cargo.
Em 1997, o texto do que viria a ser a lei nº 9.656/98, que regula o setor, foi praticamente escrito por lobistas dos planos. Em 2003, na CPI dos Planos de Saúde, as empresas impediram investigações. Em 2011, um plano de saúde cedeu jatinho para o então presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia (PT-RS), em viagem particular.
Quase mil empresas de planos de saúde que atendem 48 milhões de brasileiros faturaram R$ 93 bilhões em 2012. Com tal poder econômico, barram propostas de ampliação de coberturas, fecham contratos com ministérios e estatais para venda de planos ao funcionalismo público, definem leis que lhes garantem isenções tributárias. E se beneficiam da “dupla porta” (o atendimento diferenciado de seus conveniados em hospitais do SUS) e da renúncia fiscal de pessoas físicas e jurídicas, que abatem do Imposto de Renda os gastos com planos privados.
Agora as operadoras bateram às portas do governo federal, pedindo mais subsídios públicos em troca da ampliação da oferta de planos populares de baixo preço –mas cobertura pífia.
No momento em que os brasileiros foram às ruas protestar contra a precariedade dos serviços essenciais, num rasgo de improviso os problemas da saúde foram reduzidos à falta de médicos. O que falta é dotar o SUS de mais recursos, aplicar a ficha limpa na ocupação de cargos e eliminar a promiscuidade entre interesses públicos e privados na saúde, chaga renitente no país.

MÁRIO SCHEFFER, 46, é professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP); LÍGIA BAHIA, 57, é professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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