terça-feira, 23 de julho de 2013

Classe média brasileira: antro de desonestidade


"A classe média é uma abominação política porque é fascista, é uma abominação ética porque é violenta, e é uma abominação cognitiva porque é ignorante. Fim." (Marilena Chauí)


(o apelido "coxinha" denota o típico membro da classe média brasileira) 
A classe média é, historicamente e em geral, o que existe de mais reacionário em uma sociedade. Como lembrou o jornalista Paulo Nogueira (DCM), nas grandes transformações da humanidade, como na França de 1789, lá estava a classe média na defesa assustada da manutenção da ordem. Na Alemanha de 1933, foi a classe média que pôs Hitler no poder. Nos Estados Unidos destes dias, é a classe média — obesa, entupida de pipoca e coca cola gigante, sentada no sofá vendo blockbusters de Hollywood — que dá sustentação a guerras como a do Iraque e a do Afeganistão. Uma das razões do sucesso escandinavo como sociedade é que, lá, a classe média foi educada, e aprendeu a importância do verbo repartir. A classe média brasileira ainda está bem longe disso. É racista, preconceituosa, homofóbica. Detesta negro, detesta nordestino, detesta gays. Detesta tanta coisa que, exatamente por isso, é detestável, como disse Marilena Chauí.
E este é o problema fundamental do Brasil: sua classe média. Não aponto para o grupo rotulado de “nova classe média”, até porque sequer há consenso acerca da plausibilidade sociológica de tal classificação. Refiro-me aqui a uma camada da sociedade que tem lá suas heterogeneidades (me considero prova disso), mas que, predominantemente, adota uma postura social particularmente desonesta, correspondente à própria ignorância que cultiva. É a partir dessa predominância que analisamos a classe média como uma categoria genericamente identificável, não cabendo, sob essa perspectiva, a invocação das exceções.
Levada pelo fluxo ideológico, o traço principal da classe média brasileira é exatamente seu apego ao status quo, que a torna ferozmente conservadora. Por corolário, é notável sua tacanhez de espírito traduzida em uma economia de ousadia para o desenvolvimento humano, dado o receio em ceder a um aprofundamento genuíno de sua reflexão sociopolítica – quando a realiza. Considera-se esclarecida com seus diplomas universitários supostamente atestantes, mas se mantém alienada, míope sobre quem realmente é e sobre o papel que desempenha e/ou pode desempenhar no contexto social, invertendo valores em uma hipocrisia frequentemente inconsciente e reprodutora.
Elitista, a classe média brasileira se acha recompensada pelos méritos intrínsecos de seus integrantes e vê a desigualdade social como um fato natural. Não importa que seus filhos já tenham nascido em condições sociais favoráveis como mero fruto do acaso, de contingências ligadas à estrutura da sociedade, pois ainda assim advogarão para si que foram recompensados por uma lógica meritocrática.  Se uma pessoa pensa que tem acesso a determinados bens materiais ou culturais, inatingíveis para boa parte da população, como uma recompensa por suas qualidades intrínsecas, isto lhe dá um reconfortante sentimento de superioridade, acompanhado do desprezo pelos que não são tão bons.
Mas ela poderia pensar diferente: que estar na universidade, por exemplo, em um país de analfabetos, significa que foi privilegiada por uma série de circunstâncias – e então, em vez da sensação de superioridade, poderia vir um sentimento de responsabilidade social. Mas é muito mais gratificante, para o indivíduo que pertence à elite, olhar para o balconista da loja, para o operário, para o engraxate, e pensar “puxa, como eu sou superior” do que refletir que um pequeno acidente de percurso poderia inverter as posições[1].
No entanto, o comodismo que acomete a classe média em face de sua confortável posição social inibe a tomada de consciência, que dá lugar a “sintomas” tipicamente médio-classistas como: se fazer de vítima do Estado; se fiar e reproduzir como papagaio o discurso da grande imprensa que sustenta, já que, se achando muito sabida, imune à manipulação ideológica, não desenvolveu pensamento crítico para alcançar visão própria e barrar a manipulação midiática que a enreda; reproduzir ódio de classe inconfessadamente; ser racista inconfessadamente; ser reacionária; ser antissolidária com “verniz” de caridosa; venerar os Estados Unidos sem perceber o grave problema do imperialismo; ter apreço por livros de autoajuda, best sellers e tudo o que for alienante, ser movida pelo medo... enfim, uma lista que se estenderia demais para este espaço. Para uma sátira a respeito, recomendo o (lamentavelmente abandonado) blog  http://classemediawayoflife.blogspot.com.br/.
A classe média é exatamente quem tem mais acesso à educação e, por isso mesmo, quem, em tese, teria mais condição de promover uma sociedade melhor, justa. Mas, capturada pela ideologia dominante em nosso capitalismo pungente, ao invés de estar atenta às forças que impedem o avanço civilizatório, permanece tapada, cuidando apenas de seu próprio umbigo. O conhecimento adquirido é só o necessário para ocupar um posto de trabalho valorizado, para manter seu padrão de vida. Sua função social se limita, basicamente, a esse aspecto. Qualquer conhecimento que ultrapasse essa finalidade exclusiva de se colocar no mercado de trabalho é inferior ou diletante. Nessa lógica, é banal passar de ano escolar colando na prova de história e matar as aulas de filosofia e de sociologia na faculdade, porque, a quem não seguirá essas carreiras específicas, são matérias que não serviriam para nada – justamente as mais importantes à emancipação humana.
Por aí, já dá para sacar o quão desonesta é a classe média. Em primeiro lugar, cada médio-classista genérico é desonesto consigo mesmo na medida em que se aliena, escondendo de si a compreensão da realidade histórica, social, política e cultural que o cerca, sabotando-se em uma entrega fácil aos vieses discursivos impregnados da ideologia dominante, que passam a reproduzir desbragadamente, trabalhando a seu favor.  Desonestos consigo mesmo porque sequer procuram sair das bolhas em que vivem antes de se considerarem esclarecidos. Nessa oportunidade, impossível não lembrar de Kant:
"Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento. A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha (naturaliter maiorennes), continuem, no entanto de bom grado menores durante toda a vida. São também as causas que explicam por que é tão fácil que os outros se constituam em tutores deles. É tão cômodo ser menor. É difícil, portanto, para um homem em particular desvencilhar-se da menoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar amor a ela, sendo por ora realmente incapaz de utilizar seu próprio entendimento, porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim proceder. Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou, antes, do abuso de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua menoridade. Quem deles se livrasse só seria capaz de dar um salto inseguro mesmo sobre o mais estreito fosso, porque não está habituado a este movimento livre. Por isso são muito poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio espírito, emergir da menoridade e empreender então uma marcha segura. Que, porém, um público se esclareça a si mesmo é perfeitamente possível; mais que isso, se lhe for dada a liberdade, é quase inevitável. Pois, encontrar-se-ão sempre alguns indivíduos capazes de pensamento próprio, até entre os tutores estabelecidos da grande massa, que, depois de terem sacudido de si mesmos o jugo da menoridade, espalharão em redor de si o espírito de uma avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por si mesmo. (...) Para este esclarecimento, porém, nada mais se exige senão LIBERDADE. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões. Ouço, agora, porém, exclamar de todos os lados: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas exercitai-vos! O financista exclama: não raciocineis, mas pagai! O sacerdote proclama: não raciocineis, mas crede!" (A esfera pública, como nos mostra Habermas, se constrói pela comunicação social).
E a classe média é desonesta porque esbanja moralismo sem reconhecer os atos corruptivos que realiza no seu dia-a-dia. Já pensou se existisse um aplicativo de celular que, acompanhando seu proprietário, fosse capaz de fazer uma "patrulha moral" para detectar situações do cotidiano em que atos de corrupção ocorrem, não com dinheiro público, mas em relação a normas em geral, e deixar um bilhetinho, ou algum alerta de que isso é corrupção e que a pessoa é hipócrita? E o pior é que a reação seria do tipo "ah, uma patrulha do politicamente correto..." Ora, qual é a moral dessa pessoa de ir para a rua pedir o fim da corrupção? A corrupção tem a ver com a postura de vida, incoerência entre valores que defende e pratica, tem a ver com o modo como desenvolve suas relações sociais. A corrupção, afinal, é movida por comportamentos sociais que obedecem à lógica privatista tipicamente médio-classista, segundo a qual, por exemplo, chega-se ao cúmulo de se legitimar a sonegação de impostos e de se sustentar veementemente variadas mentiras como se fossem verdades, como o caso vergonhoso da manifestação dos médicos "com fronteiras" brasileiros.

Até quando tanta hipocrisia, tanto cinismo, tanta desonestidade?


("Kualé, leski, tá me tirandu? Que issu fera! Não tenho culpa se tu nasceu pobre, foda-se")





[1] MIGUEL, Luis Felipe. A democracia domesticada.

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