"A classe média é uma abominação
política porque é fascista, é uma abominação ética porque é violenta, e é uma
abominação cognitiva porque é ignorante. Fim." (Marilena Chauí)
(o apelido "coxinha" denota o típico membro da classe média brasileira)
A classe média é,
historicamente e em geral, o que existe de mais reacionário em uma sociedade. Como lembrou o jornalista Paulo Nogueira (DCM), nas
grandes transformações da humanidade, como na França de 1789, lá estava a
classe média na defesa assustada da manutenção da ordem. Na Alemanha de 1933,
foi a classe média que pôs Hitler no poder. Nos Estados Unidos destes dias, é a
classe média — obesa, entupida de pipoca e coca cola gigante, sentada no sofá
vendo blockbusters de Hollywood — que dá sustentação a guerras como a do Iraque
e a do Afeganistão. Uma das razões do sucesso escandinavo como sociedade é que,
lá, a classe média foi educada, e aprendeu a importância do verbo repartir. A
classe média brasileira ainda está bem longe disso. É racista, preconceituosa,
homofóbica. Detesta negro, detesta nordestino, detesta gays. Detesta tanta
coisa que, exatamente por isso, é detestável, como disse Marilena Chauí.
E este é o problema fundamental do Brasil: sua classe média. Não aponto
para o grupo rotulado de “nova classe média”, até porque sequer há consenso
acerca da plausibilidade sociológica de tal classificação. Refiro-me aqui a uma
camada da sociedade que tem lá suas heterogeneidades (me considero prova
disso), mas que, predominantemente, adota uma postura social particularmente
desonesta, correspondente à própria ignorância que cultiva. É a partir dessa
predominância que analisamos a classe média como uma categoria genericamente
identificável, não cabendo, sob essa perspectiva, a invocação das exceções.
Levada pelo fluxo ideológico, o traço principal da classe média brasileira
é exatamente seu apego ao status quo, que a torna ferozmente conservadora. Por
corolário, é notável sua tacanhez de espírito traduzida em uma economia de
ousadia para o desenvolvimento humano, dado o receio em ceder a um
aprofundamento genuíno de sua reflexão sociopolítica – quando a realiza. Considera-se
esclarecida com seus diplomas universitários supostamente atestantes, mas
se mantém alienada, míope sobre quem realmente é e sobre o papel que desempenha
e/ou pode desempenhar no contexto social, invertendo valores em uma hipocrisia frequentemente
inconsciente e reprodutora.
Elitista, a classe média brasileira se acha recompensada pelos méritos
intrínsecos de seus integrantes e vê a desigualdade social como um fato natural. Não
importa que seus filhos já tenham nascido em condições sociais favoráveis como mero
fruto do acaso, de contingências ligadas à estrutura da sociedade, pois ainda
assim advogarão para si que foram recompensados por uma lógica meritocrática. Se uma pessoa pensa que tem acesso a
determinados bens materiais ou culturais, inatingíveis para boa parte da
população, como uma recompensa por suas qualidades intrínsecas, isto lhe dá um
reconfortante sentimento de superioridade, acompanhado do desprezo pelos que
não são tão bons.
Mas ela poderia pensar diferente: que estar na universidade,
por exemplo, em um país de analfabetos, significa que foi privilegiada por uma
série de circunstâncias – e então, em vez da sensação de superioridade, poderia
vir um sentimento de responsabilidade social. Mas é muito mais gratificante,
para o indivíduo que pertence à elite, olhar para o balconista da loja, para o
operário, para o engraxate, e pensar “puxa, como eu sou superior” do que
refletir que um pequeno acidente de percurso poderia inverter as posições[1].
No entanto, o comodismo que acomete a classe média em face de sua
confortável posição social inibe a tomada de consciência, que dá lugar a
“sintomas” tipicamente médio-classistas como: se fazer de vítima do Estado; se fiar e
reproduzir como papagaio o discurso da grande imprensa que sustenta, já que, se
achando muito sabida, imune à manipulação ideológica, não desenvolveu pensamento
crítico para alcançar visão própria e barrar a manipulação midiática que a
enreda; reproduzir ódio de classe inconfessadamente; ser racista
inconfessadamente; ser reacionária; ser antissolidária com “verniz” de caridosa;
venerar os Estados Unidos sem perceber o grave problema do imperialismo; ter apreço
por livros de autoajuda, best sellers
e tudo o que for alienante, ser movida pelo medo... enfim, uma lista que se
estenderia demais para este espaço. Para uma sátira a respeito, recomendo o
(lamentavelmente abandonado) blog http://classemediawayoflife.blogspot.com.br/.
A classe média é exatamente quem tem mais acesso à educação e, por
isso mesmo, quem, em tese, teria mais condição de promover uma sociedade melhor,
justa. Mas, capturada pela ideologia dominante em nosso capitalismo pungente, ao invés de estar atenta às forças que impedem o avanço
civilizatório, permanece tapada, cuidando apenas de seu próprio umbigo. O
conhecimento adquirido é só o necessário para ocupar um posto de trabalho valorizado, para manter seu padrão de vida. Sua função social se limita,
basicamente, a esse aspecto. Qualquer conhecimento que ultrapasse essa
finalidade exclusiva de se colocar no mercado de trabalho é inferior ou
diletante. Nessa lógica, é banal passar de ano escolar colando na prova de
história e matar as aulas de filosofia e de sociologia na faculdade, porque, a
quem não seguirá essas carreiras específicas, são matérias que não serviriam
para nada – justamente as mais importantes à emancipação humana.
Por aí, já dá para sacar o quão desonesta é a classe média. Em primeiro
lugar, cada médio-classista genérico é desonesto consigo mesmo na medida em que
se aliena, escondendo de si a compreensão da realidade histórica, social,
política e cultural que o cerca, sabotando-se em uma entrega fácil aos vieses discursivos
impregnados da ideologia dominante, que passam a reproduzir desbragadamente,
trabalhando a seu favor. Desonestos
consigo mesmo porque sequer procuram sair das bolhas em que vivem antes de se
considerarem esclarecidos. Nessa oportunidade, impossível não lembrar de Kant:
"Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele
próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu
entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado
dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas
na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de
outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal
é o lema do esclarecimento. A preguiça e a covardia são as causas pelas
quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os
libertou de uma direção estranha (naturaliter maiorennes), continuem, no
entanto de bom grado menores durante toda a vida. São também as causas que
explicam por que é tão fácil que os outros se constituam em tutores deles.
É tão cômodo ser menor. É difícil, portanto, para um homem em particular
desvencilhar-se da menoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou
mesmo a criar amor a ela, sendo por ora realmente incapaz de utilizar seu
próprio entendimento, porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim
proceder. Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional,
ou, antes, do abuso de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua
menoridade. Quem deles se livrasse só seria capaz de dar um salto inseguro
mesmo sobre o mais estreito fosso, porque não está habituado a este movimento
livre. Por isso são muito poucos aqueles que conseguiram, pela transformação
do próprio espírito, emergir da menoridade e empreender então uma marcha
segura. Que, porém, um público se esclareça a si mesmo
é perfeitamente possível; mais que isso, se lhe for dada a liberdade, é
quase inevitável. Pois, encontrar-se-ão sempre alguns indivíduos capazes de
pensamento próprio, até entre os tutores estabelecidos da grande massa, que,
depois de terem sacudido de si mesmos o jugo da menoridade, espalharão em
redor de si o espírito de uma avaliação racional do próprio valor e da
vocação de cada homem em pensar por si mesmo. (...) Para este esclarecimento, porém, nada mais se exige senão LIBERDADE. E a mais
inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer
um uso público de sua razão em todas as questões. Ouço, agora, porém,
exclamar de todos os lados: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis,
mas exercitai-vos! O financista exclama: não raciocineis, mas pagai! O
sacerdote proclama: não raciocineis, mas crede!" (A esfera pública, como
nos mostra Habermas, se constrói pela comunicação social).
E a classe média é desonesta
porque esbanja moralismo sem reconhecer os atos corruptivos que realiza no seu dia-a-dia. Já pensou se
existisse um aplicativo de celular que, acompanhando seu proprietário, fosse
capaz de fazer uma "patrulha moral" para detectar situações do
cotidiano em que atos de corrupção ocorrem, não com dinheiro público, mas em
relação a normas em geral, e deixar um bilhetinho, ou algum alerta de que isso
é corrupção e que a pessoa é hipócrita? E o pior é que a reação seria do tipo
"ah, uma patrulha do politicamente correto..." Ora, qual é a moral
dessa pessoa de ir para a rua pedir o fim da corrupção? A corrupção tem a ver com
a postura de vida, incoerência entre valores que defende e pratica, tem a ver
com o modo como desenvolve suas relações sociais. A corrupção, afinal, é movida por
comportamentos sociais que obedecem à lógica privatista tipicamente
médio-classista, segundo a qual, por exemplo, chega-se ao cúmulo de se legitimar
a sonegação de impostos e de se sustentar veementemente variadas mentiras como
se fossem verdades, como o caso vergonhoso da manifestação dos médicos
"com fronteiras" brasileiros.
Até quando
tanta hipocrisia, tanto cinismo, tanta desonestidade?
("Kualé, leski, tá me tirandu? Que issu fera! Não tenho culpa se tu nasceu pobre, foda-se")
[1]
MIGUEL, Luis Felipe. A democracia domesticada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário