sexta-feira, 5 de julho de 2013

Meu corpo, meu campo de luta



O modo de enxergar certas coisas é tão arraigado no condicionamento cultural a que nos submetemos na vida, que é sempre bom nos policiarmos para evitar a própria covardia de só cairmos e sermos levados no fluxo geral do movimento do mundo,  seguindo seus possíveis erros graves. Nesse sentido, no que diz respeito à questão de gênero, me parece sempre oportuno relembrar a denúncia de Beuvoir: "não se nasce mulher, torna-se". Ser mulher é uma invenção cultural que bebe de toda a história da humanidade de opressão e dominação sobre quem, como eu, devido a uma probabilidade de 50%, nasceu com o corpo formado por células com cromossomos XX. Se eu tivesse nascido com o Y no lugar do X, meu presumido papel social teria outra configuração e o mundo estaria a meu favor. Mas, foi tudo X. Um critério físico. Uma chance, uma metade, um puro acaso biológico e, de repente, quando você vê, já está trabalhando mais,  ganhando menos, sendo fortemente hostilizada se ousar se comportar tão livremente quanto os da outra metade, que, acomodados no gozo de seus privilégios forjados culturalmente, reiteram o estranho costume de realizar absurdas discriminações negativas pautadas no critério visual (ou, quando o cérebro deles entende que um determinado corpo é feminino, já é suficiente para que atribuam àquela pessoa a aplicação de regras mais duras sob o manto cínico da proteção).

Já que é sobre o meu corpo que incide a diferenciação que me limita, fica claro que é exatamente ele meu campo de luta contra essa lógica redutora, que transformou a mera condição de minha existência em tabu. É através do meu corpo que existo e me desenvolvo – isto, sim, é a coisa mais natural do mundo. Portanto, por uma questão básica, evidente e de simples razoabilidade, até hoje é necessário que as sociedades façam o esforço de repensar seus olhares para que todos efetivamente vejam o óbvio de que 1) a diferença de sexo é só física e nada mais, e que 2) os gêneros, isto é, as imagens correspondentes a cada sexo, são invenções humanas e, mais que isso, políticas. Entre os corpos há política, relações de poder, e meu corpo é meu campo de luta porque, independentemente do contexto, o problema não está nele, mas na cabeça de quem o observa, toda comprometida com valores construídos através dos milênios em que a espécie humana habita a face da Terra. Foucault explica que os processos de subjetivação, que passam inexoravelmente pela memória, se dão diante da situação dos corpos, que refletem um campo de forças entre o controle e as resistências desse mesmo controle. O corpo é, nesse sentido, um lugar para a análise do poder, sobretudo do poder que se projeta no tempo, sendo o grande lugar da memória, corpo-arquivo.

O corpo-arquivo é o corpo da memória e memória do corpo, que, tal como explica Henri Bergson, é uma memória constituída pelo conjunto de sistemas sensório-motores que o hábito organizou e que é, portanto, uma memória quase instantânea à qual a verdadeira memória do passado serve de base. Para que uma lembrança reapareça à consciência, é preciso, com efeito, que ela desça das alturas da memória pura até o ponto preciso onde se realiza a ação. E é no presente que todos os tempos se tocam.

Por isso, enfim, todo dia é dia de batalha contra um excesso de poder que, de tão incrustado e constante na vida da gente, se fortalece na medida em que a muitos parece normal, ou mesmo invisível. Todo dia é dia de luta e meu corpo é o front da trincheira.

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