terça-feira, 9 de julho de 2013

Morte e tabu(s)


Defuntos provocam medo, cemitérios sempre relembram contos macabros e imagens sinistras. Desde criancinhas, nossa subjetividade e nossos valores são moldados de acordo com histórias e outras representações do bem contra um mal comumente associado às trevas, à escuridão e... à morte. Bicho papão, bruxa malvada ou lobo mau, no fim, todos querem nos matar, como se o término da vida fosse o pior de todos os males que alguém nos possa cometer. A morte, assim, tem se associado estreitamente ao sentimento de tristeza – pelo menos na cultura ocidental, de matriz judaico-cristã. Acontece que todo esse sentido tenebroso atribuído à morte, além de ser irracional, parece que acaba dando um verdadeiro nó no pensamento das pessoas, gerando confusões e problemas desnecessários. Para desatá-lo, acredito que é preciso quebrar o tabu que ronda o tema, sem que isso signifique jogar o direito à vida no lixo.
 
 
Primeiro, aos fatos: a morte é normal e natural. Também é vital, porque uns indivíduos morrem para alimentar outros e assim é que a vida do todo orgânico do planeta continua.

Em segundo lugar, diria que o sofrimento do luto é predominantemente egocêntrico porque tem origem no apego à vida, e não na morte em si, apesar e além da influência cultural  que dá um sentido negativo ao evento morte.
Com esse pano de fundo, pretendo enfrentar aspectos referentes à morte que envolvem pelo menos duas questões: o aborto e o veganismo.
 
Aborto
 
Nós, feministas, somos a favor do aborto legal. Em nossas campanhas, sempre frisamos que o Estado brasileiro é laico, logo não poderia proibir o aborto por causa da pressuposição dogmática religiosa de que a vida humana começa na fecundação do óvulo, uma vez que nem a própria ciência jamais concordou com isso. Afora toda a ampla elaboração argumentativa a respeito, quero aqui insistir em encarar um ponto, a ideia de que o aborto lida, sim, com a possibilidade de morte de vida humana de quem ainda está em gestação. É que muitas vezes invocamos diversos argumentos pró-escolha, mas não vamos às últimas consequências no enfrentamento da ladainha religiosa. Então vamos lá, vamos considerar que o aborto envolve a morte de um ser humano em formação.

Nunca é despiciendo lembrar que, no plano de nossa existência, as verdades são frutos de construções discursivas. Pelas vias racionais ordinárias, não temos acesso à "Verdade universal" (se é que ela existe em alguma dimensão), mas, filosoficamente propondo, ela pode existir. Nesse sentido, podemos supor, e somente supor (assim como podemos supor que o céu é verde), que, de acordo com a verdade, a vida humana começa exatamente como descrevem as religiões e, desse modo, o aborto equivaleria a matar alguém. Diante disso, continuo a favor do aborto porque o direito à vida não é absoluto (direitos são invenções humanas, não existem em absoluto ou por natureza). É lógico que não há critérios apriorísticos que autorizem, para qualquer situação, a cessão do direito à vida para dar lugar a outros direitos/necessidades, e isso sempre tornará polêmica qualquer questão que envolva um conflito com o direito à vida. No caso específico do aborto, porém, partimos de uma simples suposição – longe de ser consenso ou fato – de que o feto é um ser humano como qualquer outro. Ora, um dogma religioso é uma base muito frágil para sustentar o regramento de que as mulheres devam estar condenadas a servir de objetos, manjedouras ambulantes da humanidade, quer queiram ou não ter a experiência da maternidade. A vida das mulheres não é uma suposição nem uma promessa, é uma realidade concreta e não pode se curvar aos imperativos de ilações indexadas a uma mentalidade anti-emancipatória. Pelo exemplo do aborto, portanto, podemos afirmar que, ainda que a vida aconteça, pode ser interrompida por outrem sem que isso caracterize maldade ou crime. Trata-se de uma constatação resultante da ponderação de interesses, uma técnica do direito constitucional adotada em todos os países democráticos do mundo, que se preocupa com o atendimento aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Graças a essa técnica, resguarda-se a razão contra os excessos passionais dos fundamentalismos que as religiões fomentam, fazendo com que alguns direitos prevaleçam sobre outros em determinada situação de conflito entre direitos.
 
Veganismo
 
Um monte de gente vegana se diz cristã. Só que a bíblia diz que Jesus multiplicou os peixes para alimentar a população :/
 
A moda vegana continua. Digo moda porque, com o perdão do trocadilho, há algo de efeito manada nesse movimento ideológico segundo o qual matar bicho para fins alimentícios é um abuso por parte da espécie humana. Os "ursinhos carinhosos" de plantão, aquelas pessoas que aderem quase que  religiosamente a qualquer ideia fácil que pareça bonitinha, fazem a conexão direta entre morte, dor e maldade, reiterando o tabu da morte. É bom esclarecer que uma coisa é ser contra maus tratos, outra é ser contra matar o animal – é somente nesta segunda situação que reside a minha crítica.

Como em qualquer tabu, há uma magia, um misticismo envolvido na crença vegana. Assim como Marx explicou o fetichismo da mercadoria, noto que é justamente porque o bife sempre chegou pronto no prato do consumidor, que não participou de cada etapa do correspondente processo de trabalho, que, de repente, aquela carne passa a ser vista de maneira fetichizada. No mesmo raciocínio, os vegetais são praticamente iguais da terra para o prato, não sofrem uma transformação tão drástica quanto a do boi para o bife, de modo que o fetichismo não acontece nesse caso ou não acontece com tanta intensidade. E, então, os vegetais – que também morrem para que nos alimentemos – são dogmaticamente tidos como seres moralmente comestíveis só porque não sentem dor e têm uma experiência de vida muito diferente da nossa. No fundo, acho que o movimento de auto-identificação com os animais, humanos ou não, não deixa de ser mais um trabalho do ego. É uma autoimagem refletida, quase que um compadecimento baseado em um compromisso corporativista, a corporação e primazia dos bichos que se mexem e fogem por reflexo quando se veem ameaçados de morte. Para mim, que não vejo a morte como algo triste, o veganismo é uma tolice. Se for para ser mística, me identifico mesmo é com o misticismo autêntico, nascido na Antiguidade e baseado na experiência da fusão total com Deus. De fato, me sinto fundida a tudo na experiência do Ser. A partir dessa perspectiva, qualquer alteridade é uma falsidade: a matéria é só uma aglomeração de átomos e as cisões imageticamente forjadas pelos diferentes modos de  organização da matéria não resistem à força de uma profunda meditação, que me faz consciente de que integro o todo, em uma conexão com o divino, que está em todas as coisas e seres.

 

5 comentários:

  1. Assuntos polêmicos, hein? Vou te dizer que encaro estes assuntos de acordo com o que sinto em relação a eles. Toda escolha traz uma consequência. Acho que é preciso se conhecer e entender que tipo de consequência estamos dispostos a enfrentar...

    Bom, este é um assunto pra algum tempo de conversa... :)

    Beijo grande!

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  2. Ah... parei muito pra refletir sobre a naturalidade da morte!

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  3. rsrs, que bom, Beca! Questionar a maneira de ver as coisas faz tão bem pra mim, que fico feliz quando consigo provocar a reflexão de outras pessoas também. Por isso mesmo, nada é definitivo aqui. Espero te encontrar em breve para um papo daqueles nossos, com muita troca de ideias! Beijão

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  4. Um desabafo relacionado à moda vegana:
    Eu não ia falar nada. Mas tô de saco cheio dessa galera que fica postando sobre maus-tratos contra os animais. Irrita-me por que em alguns casos conheço as pessoas e sei que elas NÃO SE IMPORTAM COM AS PESSOAS, mas se vêem um gatinho ser enxotado se revoltam. Lutam pelos direitos dos animais, mas não se comovem com uma criança dormindo na rua, fogem da pessoa que pede esmola, não ajudam um amigo em dificuldade, etc. Percebam que eu não sou a favor de QUALQUER tipo de violência contra os animais, eu os amo e sempre amei. O que eu acho preocupante aqui é a escolha das prioridades. "Prefiro bicho do que gente"? Tem algo de muito errado com você. Desculpe, minha opinião. Enquanto isso, no Village Mall e outros estabelecimentos do nível, pessoas são enxotadas, ao passo que os animais (dos ricos) são bem vindos.
    ‪#‎acordaporra
    (Diego Froes)

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  5. Interessante o texto... e em resposta ao Anonimo: Essas pessoas que postam coisas sobre maus tratos contra animais são diversas, caído generalizar.De qualquer forma, acho que cada um come o que quer e ama quem quer tbm. Eu vivo bem sem comer carne e a saúde vai bem obrigada. Pode só ser impressão, mas sinto quase sempre, que as pessoas espumam ao ouvir: Não como carne, obrigada!

    É triste, é muito ruim, mas passei a adotar a malandragem de somente agradecer a oferenda sem deixar claro o real motivo.Evito assim os odiosos olhares de faquinha.

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